autoconhecimento
É possível libertar a mente de TODO E QUALQUER condicionamento?
Temos um grande número de graves problemas, no mundo inteiro, e ainda que venham a criar-se "Estados de Bem-Estar” e os políticos consigam estabelecer uma paz superficial de coexistência, com prosperidade econômica, num país como este, onde o contínuo desenvolvimento da produção industrial promete um futuro feliz, não creio que os nossos problemas possam ser resolvidos com tanta facilidade. Nós desejamos que eles sejam resolvidos, mas esperamos que os outros os resolvam: os instrutores religiosos, psicanalistas, os guias ou líderes; e também confiamos na tradição ou apelamos para os livros e filosofias. E parece-me que é por esta razão que vos achais aqui: para que vos indiquem o que deveis fazer. Ou supondes que, ouvindo explicações, ficareis aptos a compreender os problemas que desafiam a cada um de nós. Mas eu penso que estais cometendo um grave erro, se esperais que, pelo simples fato de ouvirdes uma ou duas palestras, sem prestardes muita atenção, sereis guiados à compreensão dos nossos múltiplos problemas. Não é, em absoluto, minha intenção explicar-vos de maneira simplesmente verbal ou intelectual, os problemas que se nos apresentam; antes, pelo contrário, o que vamos tentar, durante estas palestras, é penetrar muito mais fundo na causa fundamental que torna todos esses problemas tão complicados e tão infinitamente dolorosos e aflitivos.
Peço-vos tenhais paciência para escutar, sem vos deixardes levar por palavras e sem objetardes a esta ou àquela frase ou ideia. Necessita-se de infinita paciência para descobrir o que é verdadeiro. Os mais de nós temos pressa, queremos resultado, queremos bom êxito, um objetivo, um certo estado de felicidade, ou experimentar algo a que a mente possa prender-se, apegar-se. Mas o que se necessita, penso eu, é de paciência e perseverança no buscar, sem se ter nenhum fim em vista. Quase todos nós buscamos alguma coisa, e por isso vos achais aqui; em nossa busca, porém, queremos achar algo, um resultado, um alvo, um “estado de ser” de felicidade e paz; nossa busca, por conseguinte, já está determinada e, portanto, deixa de ser uma verdadeira busca. Acho de muita importância compreender-se isto. Quando a mente busca um determinado estado, a solução de um problema, quando busca a Deus, a Verdade, ou deseja certa experiência, mística ou de outra ordem, ela já a concebeu e formulou, é infinitamente vã a sua busca. E uma das coisas mais difíceis é libertarmos a mente desse desejo de resultado.
A meu ver, os nossos incontáveis problemas só podem ser resolvidos quando ocorrer uma revolução fundamental da mente, porque só uma revolução dessa ordem pode proporcionar a compreensão do Verdadeiro. Nessas condições, importa compreendermos o funcionamento de nossa própria mente, não por um processo de autoanálise ou introspecção e, sim, pelo percebimento claro do seu processo total; e é este processo total que desejo investigar nestas palestras. Se não nos vemos como somos, se não compreendemos o “pensador” — a entidade que busca, que está perpetuamente a exigir, a interrogar, a querer descobrir, a entidade que está criando o problema, isto é, o “eu”, o “ego” — então, o nosso pensar, a nossa busca, não terá significação alguma. Enquanto o nosso “instrumento de pensar” não for lúcido, enquanto estiver pervertido, condicionado, tudo o que pensarmos há de ser, inevitavelmente, limitado, estreito.
Nosso problema, pois, é de como libertarmos a mente de todos os condicionamentos, e não “de que maneira condicioná-la melhor”. Compreendeis, senhores? Quase todos nós estamos em busca de um condicionamento melhor. Os comunistas, os católicos, os protestantes e as demais seitas, por todo o mundo, inclusive hinduístas e budistas — todos visam a condicionar a mente de acordo com um padrão mais nobre, mais virtuoso, mais abnegado, ou um padrão religioso. Cada indivíduo no mundo inteiro, está inteiramente interessado em condicionar sua mente de uma maneira melhor, e nunca se levanta a questão do libertar a mente de TODO E QUALQUER condicionamento. Mas quer-me parecer que, enquanto a mente não estiver livre de todo o seu condicionamento, isto é, enquanto estivermos condicionados como cristãos, budistas, hinduístas, comunistas, etc., não pode deixar de haver problemas.
Sem dúvida, só é possível descobrir o que é real ou se existe Deus, quando a mente está livre de todo condicionamento. A mera ocupação da mente a respeito de Deus, da verdade, do Amor, não tem realmente nenhuma significação, porquanto essa mente só pode funcionar dentro da esfera de seu condicionamento. O comunista que não crê em Deus, pensa de um modo, e o homem que crê em Deus, que está ocupado com um dogma, pensa de um outro modo; mas a mente de todos os dois está condicionada e, portanto, nem um nem outro é capaz de pensar livremente, e todos os seus protestos, suas teorias e crenças muito pouco significam. Religião, pois, não é frequentar a igreja, ter certos dogmas e crenças. Religião deve ser uma cosia de todo diversa, pode significar a total libertação da mente de toda esta vasta e secular tradição; porque só a mente livre é que pode achar a verdade, a realidade, aquilo que transcende todas as projeções mentais.
Pode-se ver que isto não é uma teoria pessoal, minha, se observarmos o que está acontecendo no mundo. Os comunistas pretendem solucionar os problemas da vida de uma maneira, os hinduístas de outra maneira, os cristãos ainda de outra maneira; a mente de todos eles, por consequência, está condicionada. Vossa mente está condicionada como cristã, quer admitais, quer não. Podeis libertar-vos superficialmente da tradição cristã, mas camadas profundas do vosso inconsciente estão cheias dessa tradição, condicionadas por séculos de educação segundo um determinado padrão; e, por certo, a mente que deseja achar algo mais além — se tal coisa existe — essa mente tem de libertar-se, em primeiro lugar, de todo condicionamento.
Fica entendido, pois, que nestas palestras não vamos de modo nenhum tratar da questão do aperfeiçoamento pessoal, nem tão pouco interessa o aperfeiçoamento de nenhum padrão; não pretendemos condicionar a mente segundo um padrão mais nobre, ou um padrão de maior alcance social. Pelo contrário, o que pretendemos é descobrir como libertar a mente, a consciência total de todo condicionamento, porque, a menos que isso aconteça, nunca haverá o experimentar da realidade. Podeis falar sobre a realidade, ler inúmeros volumes a seu respeito, ter todos os livros sagrados do Oriente e do Ocidente, mas se vossa mente não estiver cônscia de seus próprios processos, não perceber que ela própria está funcionando dentro de um determinado padrão, e não for capaz de libertar-se desse condicionamento, é bem de ver que sua busca será sempre vã.
Nessas condições, parece-me da maior importância comecemos por nós mesmos, comecemos por estar cônscios de nosso próprio condicionamento. E como é difícil uma pessoa saber que está condicionada! Superficialmente, nas camadas conscientes da mente, podemos perceber que estamos condicionados; podemos libertar-nos de um padrão e adotar outro, abandonar o Cristianismo e nos tornarmos comunistas, deixar o Catolicismo e aderir a outro grupo igualmente tirânico, e, assim fazendo, pensar que estamos volvendo para a Realidade. Mas isso, pelo contrário, é mera troca de prisões.
Todavia, isto é o que quase todos queremos: encontrar um lugar seguro, no nosso pensar. Queremos seguir um padrão fixo e não ser perturbados em nossos pensamentos, em nossas ações. Mas só a mente capaz de observar com paciência o seu condicionamento e dele libertar-se, só essa mente é capaz de uma revolução, uma transformação radical, e descobrir, assim, o que se acha infinitamente além da mente, além de todos os nossos desejos, nossas vaidades e paixões. Sem o autoconhecimento, sem nos conhecermos exatamente como somos — e não como gostaríamos de ser, que é simples ilusão, figa idealística — sem conhecermos os movimentos do nosso pensar, todos os nossos “motivos”, nossos pensamentos, nossas inumeráveis reações, não haverá possibilidade de compreendermos a ultrapassarmos o processo do pensar.
Tiveste o trabalho e o incômodo de vir aqui, nesta tarde quente, para ouvir esta palestra. Mas eu estou a me perguntar se realmente estais escutando. Que é escutar? Acho importante examinarmos isso um pouquinho, se não vos desagradar. Estais realmente escutando, ou apenas interpretando segundo o vosso próprio entender? Sois capazes de escutar a alguém? Ou dar-se-á que, no processo de escutar, estão surgindo pensamentos e opiniões vários, e por conseguinte os vossos conhecimentos e experiência própria estão intervindo, pondo-se de permeio entre o que se está dizendo e a vossa compreensão?
Acho importante se compreenda a diferença entre “atenção” e “concentração”. A concentração implica escolha, não é verdade? Estais procurando concentrar-vos no que estou dizendo e, por conseguinte, a vossa mente está focada, estreitada, e outros pensamentos estão intervindo; assim sendo, não há um verdadeiro escutar, mas, sim, uma batalha que se está travando na mente, um conflito entre o que estais escutando e o vosso desejo de traduzi-lo, de aplicar o que estou dizendo, etc. Mas, por outro lado, a atenção é uma coisa completamente diferente. Na atenção não há enfoque, não há escolha; há percebimento completo, sem interpretação. E, se somos capazes de ouvir tão atenta e completamente o que se está dizendo, esta mesma atenção produzirá o milagre da transformação, na própria mente.
Estamos falando a respeito de algo de imensa importância, porque, se não houver uma revolução fundamental em cada um de nós, não percebo como será possível operarmos uma vasta e radical transformação no mundo. E esta transformação radical, decerto, é sumamente relevante. A mera revolução econômica, de caráter comunista ou socialista, é destituída de qualquer importância. Só pdoe haver revolução de natureza religiosa; e a revolução religiosa não será possível se a mente está apenas ajustada ao padrão de um condicionamento anterior. Enquanto uma pessoa for cristã ou hinduísta, não poderá haver revolução fundamental, no sentido verdadeiramente religioso da palavra. E nós temos real necessidade desta revolução. Quando a mente estiver livre de todo condicionamento, ver-se-á surgir a ação criadora da Realidade, de Deus, ou o nome que preferirdes; e só a mente que se acha nesse estado, a mente que está a experimentar constantemente essa criação, só ela poderá criar uma perspectiva nova, valores diferentes, um mundo diferente.
É, pois, importante compreendermos nós mesmos, pois não? O autoconhecimento é o começo da sabedoria. O autoconhecimento não se consegue de acordo com algum psicólogo, livro ou filósofo; ele consiste em conhecermos a nós mesmos tais como somos, de momento a momento. Compreendeis isso? Conhecer a si mesmo é cada um observar o que pensa, o que sente, não apenas superficialmente, pois devemos estar profundamente cônscios do que é, sem condenação, sem julgamento, sem avaliação ou comparação. Experimentai-o, e vereis como é difícil a uma mente que foi exercitada durante séculos para condenar, julgar e avaliar, deter todo esse processo e ficar simplesmente a observar o que é. Entretanto, se não se fizer esta observação, não apenas no nível superficial, mas em todo o conteúdo da consciência, nunca será possível penetrarmos as profundezas da mente.
Vêde, por favor, se aqui estais realmente com o fim de compreender o que se está dizendo, que é isto que deve interessar-nos, e nada mais. Vosso problema não é o de saber a que sociedade pertencer, a que gênero de atividade entregar-vos, que livros ler, e outras superficialidades dessa ordem, mas, sim, de saber como libertar a mente do condicionamento. A mente não é apenas a consciência desperta, ocupada com as atividades diárias, mas é também as camadas profundas do inconsciente, onde se encontra todo o resíduo do passado, da tradição, dos instintos raciais. Tudo isso é a mente, e amenos que essa consciência total seja livre, de ponta a ponta, a nossa busca, nossa investigação, nosso descobrimento, será limitado, estreito, insignificante.
A mente está toda condicionada. Não há uma só parte da mente que não esteja condicionada. Nosso problema, portanto, é este: Pode a mente, assim condicionada, libertar-se? E quem é a entidade que poderá libertá-la? Compreendeis o problema? A mente é a consciência total, com todas as suas camadas de conhecimentos, aquisições, tradições, instintos raciais, memórias. Esta mente pode libertar-se? Ou só pode libertar-se ao perceber que está condicionada e que todo movimento que faça para sair de seu condicionamento é outra forma de condicionamento? Espero que estejais compreendendo. Se não, continuaremos a examinar esse ponto dos próximos dias.
A mente está toda condicionada, o que é um fato evidente, se refletimos a tal respeito. Isso não é invenção minha, é um fato. Pertencemos a uma dada sociedade, fomos educados de acordo com determinada ideologia, certos dogmas, tradições, e a vasta influência da civilização, da sociedade, condiciona-nos incessantemente o espírito. Como pode esse espírito ser livre, se todo movimento para libertar-se resulta de seu condicionamento e, por conseguinte, produzirá, forçosamente, mais condicionamento? Só há uma resposta: a mente só pode ser livre quando está completamente tranquila. Embora tenha problemas e inúmeros impulsos, conflitos, ambições, se — mercê de autoconhecimento, da autovigilância sem aceitação ou condenação — ela estiver cônscia, imparcialmente, do seu próprio processo, então, desse percebimento há de resultar um silêncio extraordinário, uma tranquilidade de espírito em que não se observa movimento de espécie alguma. É só então que a mente é livre, porquanto nada mais deseja, nada mais busca, não visa a nenhum objetivo ou ideal — que são as projeções de toda mente condicionada. E se logrardes alcançar essa compreensão em que não há automistificação, encontrareis a possibilidade de vir surgir aquela coisa extraordinária que se chama criação. Só então a mente está apta a compreender aquela imensidade que se pode chamar Deus, a Verdade, ou como quiserdes — a palavra tem muito pouca importância. Podeis ser prósperos, socialmente possuir muitos bens — automóveis, casas, geladeiras — ter paz superficial, mas, sem o surgimento daquilo que é imensurável, encontrareis sempre aflições. A libertação da mente de seu condicionamento é o fim do sofrimento.
Krishnamurti - Realização Sem Esforço - Capítulo 1 - páginas 5 à 12 - 1955, Ojaí, Califórnia, USA
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