O medo é o estado comum de toda a humanidade, vivam vocês numa casinha ou num palácio, não tenham nenhum trabalho ou tenham trabalho demais, tenham um tremendo conhecimento a respeito de tudo sobre a face da terra ou sejam ignorantes, sejam vocês padres ou os mais altos representantes de deus, ou sejam o que forem, ainda há este medo profundo e enraizado, comum a toda a humanidade. Este é o terreno comum onde pisa toda a humanidade. Não há dúvidas quanto a isto. Trata-se de um fato absoluto, irrevogável, que não pode ser contradito. Enquanto o cérebro estiver aprisionado neste modelo de medo, sua operação é limitada e, portanto, nunca poderá funcionar inteiramente. Assim, é necessário, se a humanidade quiser sobreviver completamente, como seres humanos e não como máquinas, descobrir por si mesmos se é possível ficar totalmente livre do medo.
Estamos preocupados com o próprio medo, não com a expressão do medo. O que é o medo? Quando há medo, existe naquele mesmo momento o reconhecimento do medo? Será o medo descritível no momento em que a reação está acontecendo, ou a descrição vem depois? "Depois" é tempo. Suponhamos que alguém esteja com medo: quer seja medo de alguma coisa, medo de algo que fez no passado e não quer que outra pessoa saiba, ou aconteceu alguma coisa no passado que novamente desperta o medo, ou existe um medo por si mesmo sem um objeto? No segundo em que o medo acontece nós o chamamos de medo? Ou isso acontece somente depois? Certamente que é depois de ter acontecido. Isso significa que os incidentes anteriores de medo, que foram mantidos no cérebro, são lembrados imediatamente após a reação acontecer; a memória diz: "Isso é medo." Na proximidade da reação não o chamamos de medo. É somente depois de acontecer que o chamamos de medo. Nós o chamamos de medo pela lembrança de outros incidentes surgidos, os quais foram chamados de medo. Lembramo-nos desses medos do passado e surge uma nova reação, que imediatamente identificamos com a palavra medo. Isso é bastante simples. Assim, sempre há a memória operando no presente.
Então, o medo é tempo? — O medo de alguma coisa que aconteceu há uma semana, que produziu esta sensação que nós chamamos de medo e a sua implicação futura, de que não deva acontecer de novo; no entanto, ela pode acontecer de novo; logo, temos medo dela. Assim, nós nos perguntamos: será o tempo a origem do medo?
Assim, o que é o tempo? O tempo mostrado no relógio é muito simples. O sol nasce numa determinada hora e se põe numa determinada hora — ontem, hoje e amanhã. Essa é a sequência natural do tempo. Há também o tempo psicológico, interior. O incidente que aconteceu na semana passada, que deu prazer ou que despertou o sentido do medo, é lembrado e projetado no tempo — eu posso perder minha posição, posso perder meu dinheiro, posso perder minha esposa — futuro. Assim, será o medo parte do tempo psicológico? Parece. E o que é o tempo psicológico? Não é apenas o tempo físico que precisa de espaço, mas também o tempo psicológico precisa de espaço — ontem, a semana passada, modificados hoje, amanhã. Há espaço e tempo. Isso é simples. Assim, será o medo o movimento do tempo? Assim, o pensamento é tempo e o tempo é o medo, obviamente. Tivemos medo no dentista. Isto está armazenado, é lembrado, projetado; esperamos não ter de novo aquela dor — o pensamento se movimentando. Assim, o medo é um movimento do pensamento no espaço e no tempo. Se percebemos isso, não como uma ideia, mas como uma realidade (o que significa que temos que dar a esse medo atenção completa no momento em que ele nasce), então ele não é registrado. Façam isto e descobrirão por vocês mesmos. Quando vocês dão atenção completa a um insulto, não existe o insulto. Ou se alguém aparece e diz: "Que pessoa maravilhosa você é" e você presta atenção, isso não causa nenhum efeito. O movimento do medo é o pensamento no tempo e no espaço. Este é um fato. Não é algo descrito pelo conferencista. Se vocês observaram por si mesmos, depois, será um fato absoluto, vocês não podem fugir dele. Vocês não podem fugir de um fato; ele existe sempre. Vocês podem tentar evitá-lo, podem tentar suprimi-lo, tentar todas as espécies de fuga, mas ele sempre existirá. Se vocês derem atenção completa ao fato de que o medo é o movimento do pensamento, então não existirá o medo, psicologicamente. O conteúdo do nosso consciente é o movimento do pensamento no tempo e no espaço. Seja esse tempo muito limitado, ou vasto e extenso, ainda assim é um movimento no tempo e no espaço.
O pensamento criou muitas formas diferentes de poder em nós, psicologicamente, mas todas elas são limitadas. Quando há a libertação da limitação há um surpreendente sentido de poder, não o poder mecânico, mas um extraordinário sentido de energia. Isso nada tem a ver com o pensamento e, portanto, esse poder, essa energia, não podem ser mal-empregados. Mas se o pensamento diz: "vou usá-la", então esse poder, essa energia é dissipada.
Outro fator que existe em nossa consciência é o pesar, o desgosto, a dor e as mágoas que permanecem na maioria dos seres humanos desde a infância. Esse ferimento psicológico, a sua dor, é lembrada, resiste; o desgosto nasce dele, o pesar está envolvido com ele. Há o pesar global da humanidade, que deparou com milhares e milhares de guerras, pelas quais milhões de pessoas choraram. A máquina da guerra ainda está conosco, dirigida pelos políticos, reforçada pelo nosso nacionalismo, pelo sentimento de que estamos separados dos demais, "nós" e "eles", "você" e "eu". É um pesar global o que os políticos estão construindo, construindo cada vez mais. Estamos prontos para outra guerra e, quando nos preparamos para alguma coisa, há uma espécie de explosão em algum lugar — pode não ser no Oriente Médio, pode acontecer aqui. Uma vez que estamos nos preparando para alguma coisa, vamos consegui-la; é como preparar a comida. Mas somos tão estúpidos, que tudo isto continua, inclusive o terrorismo.
Estamos perguntando se todo este modelo de estarmos magoados, de conhecermos a solidão e a dor, de resistirmos, de nos recolhermos, de nos isolarmos, o que causa dor física; pode ter um fim; se o desgosto, o pesar de perdermos alguma crença preciosa que temos mantido, ou a desilusão que vem de perdermos alguém que havíamos seguido, por quem lutamos, nos entregando, pode também ter um fim. É possível sermos sempre livres de tudo isto? É possível, se nos aplicarmos, e não apenas falarmos interminavelmente sobre isto. Nestas circunstâncias, percebemos que estamos magoados psicologicamente desde a infância, vemos todas as consequências desse ferimento a que resistimos, do qual nos retraímos, não querendo mais ser feridos. Nós encorajamos o isolamento e, portanto, construímos um muro em volta de nós mesmos. Em nossas relações, estamos fazendo o mesmo.
As consequências de sermos feridos desde a infância são a dor, a resistência, o recolhimento, o isolamento, um medo cada vez mais profundo. E, como disse o conferencista, há o pesar global da humanidade; os seres humanos têm sido torturados pelas guerras, torturados pelas ditaduras, pelo totalitarismo, torturados nas diversas partes dos mundo. E há o pesar pelo meu irmão, pelo meu filho, pela minha mulher, que fugiu ou que morreu; o pesar da separação, o pesar que acontece quando um está profundamente interessado em alguma coisa e o outro não está. Em todo este pesar não há nenhuma compaixão, nenhum amor. O fim do pesar traz o amor — não o prazer, não o desejo, mas o amor. Quando há amor, há compaixão, e disso nasce a inteligência, que nada tem a ver com a "inteligência" do pensamento.
Temos que olhar muito cuidadosamente para nós mesmos como humanidade, para o motivo pelo qual carregamos todas estas coisas em nossas vidas, o motivo pelo qual jamais demos fim a esta condição. Será em parte pela indolência, em parte pelo hábito? Geralmente, dizemos: "faz parte do nosso hábito, parte do nosso condicionamento. O que posso fazer? Como posso me descondicionar? Não consigo encontrar a resposta, vou até o guru na porta ao lado", ou mais longe, ao padre, ou a este ou àquele. Nós nunca dizemos: "Vamos olhar cuidadosamente para nós mesmos e perceber se podemos vencer isto, como qualquer outro hábito." O hábito de fumar pode ser suspenso, ou o hábito das drogas e do álcool. Mas dizemos: "Que importância tem? Estou envelhecendo, de qualquer maneira o corpo está se destruindo, assim, que importância tem um pouco mais de prazer?" E assim prosseguimos. Não nos sentimos completamente responsáveis por todas as coisas que fazemos. Pelo contrário, culpamos o nosso meio, a sociedade, os nossos pais, a hereditariedade; achamos alguma desculpa, mas nunca nos aplicamos. Se realmente tivéssemos o anseio, o anseio imediato de descobrir por que estamos feridos, isso pode ser feito. Estamos feridos porque construímos uma imagem de nós mesmos. Isto é um fato. Quando dizemos: "estou ferido", é a imagem que temos a nosso próprio respeito que está ferida. Alguém aparece e pisa com sua bota essa imagem, e nós nos ferimos. Nós nos ferimos pela comparação: "Eu sou isto, mas outra pessoa é melhor." Enquanto tivermos uma imagem de nós mesmos, vamos nos ferir. Este é um fato e, se não prestarmos atenção a esse fato, mas retivermos uma imagem de nós mesmos, de qualquer espécie, alguém vai espetar nela um alfinete e vamos nos ferir. Se fazemos uma imagem de nós mesmos como alguém que se dirige a grandes audiências, é famoso e conseguiu uma reputação que deseja manter, então alguém irá ferir essa imagem — alguém que tenha uma audiência maior. Se dermos atenção completa à imagem que temos de nós mesmos — atenção, não concentração, mas atenção —, então veremos que a imagem não tem sentido e desaparece.
Krishnamurti — A Rede do Pensamento — Cultrix — Pág. 57 à 62