Porque são os entes humanos apegados, dependentes?
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Porque são os entes humanos apegados, dependentes?


Interrogante: Eu gostaria de compreender a natureza da dependência. Vejo-me na dependência de tantas coisas — mulheres, diversões, bons vinhos, minha esposa e filhos, meus amigos, o que dizem os outros. Felizmente, já não dependo do “entretenimento” religioso, mas dependo dos livros que leio para me estimular e da boa conversação. Vejo que os jovens são também dependentes, talvez não tanto quanto eu, mas têm igualmente suas próprias formas de dependência. Estive no Oriente e lá vi como as pessoas dependem do guru e da família. Lá a tradição tem maior importância e raízes mais profundas do que aqui na Europa e, naturalmente, muito mais profundas ainda do que na América. Mas, parece que todos nós dependemos de alguma coisa, para nos amparar, não apenas fisicamente, porém, muito mais ainda, interiormente. Assim, eu desejava saber se há alguma possibilidade de nos livrarmos, realmente, da dependência, e se devemos livrar-nos dela.

Krishnamurti: Suponho que o que lhe interessa são os apegos psicológicos, interiores. Quanto mais apego, tanto maior a dependência  Não há só apego a pessoas, mas também a ideias e a coisas. Somos apegados a certo ambiente, um certo país, etc. Daí se origina a dependência e, por conseguinte, a resistência.

Interrogante: Porque “resistência”?

Krishnamurti: O objeto de meu apego é meu domínio, territorial ou sexual. Esse domínio eu protejo, resistindo a qualquer espécie de intrusão por parte de outros. Limito, também, a liberdade da pessoa a quem estou apegado, e limito minha própria liberdade. Apego, portanto, é resistência. Tenho apego a alguma coisa ou a alguma pessoa. Esse apego é sentimento de posse; o sentimento de posse é resistência e, consequentemente, apego é resistência.

Interrogante: Sim, percebo.

Krishnamurti: Qualquer forma de invasão de meus domínios leva à violência, legal ou psicologicamente. Portanto, apego é violência, resistência, aprisionamento nosso e do objeto de nosso apego. Apego significa “Isto é meu, e não teu; não o toque!”. Por conseguinte, essa relação é resistência a outros. O mundo inteiro está dividido em “meu” e “seu”; minha opinião, meu julgamento, meu alvitre, meu Deus, minha pátria — uma infinidade de absurdos tais. Vendo-se tudo isso ocorrer em nossa vida diária, não abstratamente, porém realmente, é lícito perguntar porque existe esse apego a pessoas, coisas e ideias. Por que depende uma pessoa? Existir é estar em relação, e todas as relações estão nessa dependência, com sua violência, resistência e domínio. Eis o que fizemos do mundo. Quando há posse, há necessariamente domínio. Encontramo-nos com a beleza e nasce o amor; imediatamente ele se converte em apego, e começa a nossa aflição. O amor “fugiu-nos pela janela”. Perguntamos, então: “Que foi feito de nosso grande amor?” É isso, com efeito, o que está acontecendo em nossa vida diária. E, assim, podemos agora perguntar: Porque é que o homem invariavelmente tem apego, não só ao que é belo, mas também a tudo quanto é ilusão e a tantas fantasias absurdas?

A liberdade não é um estado de não dependência; é um estado positivo em que não há dependência nenhuma. Mas, a liberdade não é um resultado, a liberdade não tem causa. Isso precisa ser compreendido bem claramente, antes de se poder examinar esta questão do porque o homem depende ou se deixa cair na armadilha do apego, com todas as suas aflições. Porque temos apego, tentamos cultivar um estado de independência — e isso é mais uma forma de resistência.

Interrogante: Então, que é liberdade? Você diz que ela não é a negação ou cessação da dependência; você diz que não é estar livre de alguma coisa, porém, simplesmente, liberdade. Que é ela, pois? Uma abstração ou uma realidade?

Krishnamurti: Não é uma abstração. É um estado mental em que não existe nenhuma espécie de resistência. Ela não é como o rio que se acomoda às rochas que encontra em seu curso, contornando-as ou sobre elas passando. Nessa liberdade não há rochas, porém apenas o movimento da água.

Interrogante: Mas a rocha do apego existe, neste rio da vida . Não se pode simplesmente falar de outro rio em que não existem rochas.

Krishnamurti: Não estamos evitando a rocha ou dizendo que ela não existe. Temos, primeiramente, de compreender a liberdade. Ela não é o mesmo rio que aquele onde existem rochas.

Interrogante: Eu tenho ainda o meu rio, com suas rochas, e foi sobre ele que vim lhe consultar, e não sobre algum outro rio livre de rochas. Este não tem nenhuma utilidade para mim.

Krishnamurti: Está certo. Mas, você deve saber o que é liberdade, para poder compreender as suas rochas. Deixemos, porém, de parte este símile. Consideremos tanto a liberdade como o apego.

Interrogante: O meu apego tem alguma coisa que ver com a liberdade, ou a liberdade com meu apego?

Krishnamurti: No seu apego há dor. Você quer ficar livre dessa dor e trata de cultivar o desapego, sendo isso mais uma forma de resistência. No oposto não se encontra nenhuma liberdade. Estes dois opostos (o apego e o desapego) são idênticos e mutuamente se reforçam. O que lhe interessa é saber como ter os prazeres do apego, sem as suas aflições. Isso não é possível. Eis porque importa compreender que liberdade não significa desapego. No processo da compreensão do apego, nasce a liberdade, e não na fuga do apego. Assim, nossa questão agora é esta: Porque são os entes humanos apegados, dependentes?

Vendo que somos “nada”, que em nós mesmos somos um deserto, esperamos com a ajuda de outrem encontrar água. Vendo-nos vazios, pobres, desgraçados, incompletos, sem nada de interessante ou de importante, esperamos, com a ajuda de outro, enriquecer-nos. Com a ajuda do amor de outrem, esperamos esquecer a nós mesmos. Com a ajuda da beleza de outrem  esperamos alcançar a beleza. Com a ajuda da família, da nação, do amante, de alguma crença fantástica, esperamos cobrir de flores o deserto. E Deus é o supremo amante. Em todas essas coisas procuramos amparar-nos. Nisso há dor e incerteza, e o deserto se torna mais árido do que nunca. Naturalmente  ele não se torna nem mais árido nem menos árido; continua a ser o que sempre foi; nós é que o estivemos evitando  enquanto fugíamos para uma dada forma de apego, com suas dores, e destas dores fugindo para o desapego. Mas, continuamos áridos e vazios como antes. Assim, em vez de tentarmos a fuga para o apego ou o desapego, não será melhor tornar-nos cônscios do fato, dessa profunda pobreza e insuficiência interior, desse sombrio e vazio isolamento? Essa é a única coisa importante, e não o apego ou o desapego. Você pode olhar o fato sem nenhuma ideia de condenação ou avaliação? Quando o faz, está a olhá-lo como o observador a olhar a coisa observada, ou sem o observador?

Interrogante: “O observador” — que você quer dizer com isso?

Krishnamurti: Você está a olhá-lo de um centro, com todas as suas conclusões de agrado e desagrado, de opinião, juízo, desejo de se libertar desse vazio, etc. — está a olhar a sua aridez com os olhos da conclusão, ou a está olhando com olhos completamente límpidos? Quando a olha com olhos límpidos, não existe observador. E, se não existe observador, existe então a coisa que é observada como solidão, vazio, aflição?

Interrogante: Você quer dizer que aquela árvore não existe, se a olho sem conclusões, sem um centro que é o observador?

Krishnamurti: A árvore existe, naturalmente.

Interrogante: Porque é que a solidão desaparece e a árvore não desaparece, quando a olho sem o observador?


Krishnamurti: Porque a árvore não foi criada pelo centro, pela “mente do eu”. Com sua atividade egocêntrica, a mente do eu criou esse vazio, esse isolamento. Mas, quando aquela mente em que não há centro olha, termina a atividade egocêntrica. Já não existe solidão. A mente funciona então em liberdade. Observando a estrutura do apego e do desapego, e o movimento da dor e do prazer, vemos como a mente do “eu” cria seu próprio deserto e suas próprias fugas. Quando a mente do “eu” está quieta, não há mais deserto, e não há fuga.  

Krishnamurti — Uma Luz que não se apaga





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