Só se pode ver a totalidade de algo quando o pensamento não interfere
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Só se pode ver a totalidade de algo quando o pensamento não interfere



Temos de perceber de que é que estamos dependendo. Cumpre descobrir por que razão dependemos de alguma coisa, psicologicamente não me refiro à dependência tecnológica ou à dependência em que estamos do entregador de leite... Mas, psicologicamente, por que é que dependemos, o que supõe a dependência? Esta é uma pergunta essencial, quando se quer investigar a dissipação, a deterioração e a perversão da energia — dessa energia de que temos vital necessidade para compreendermos nossos inúmeros problemas.

De que é que tanto dependemos: de uma pessoa, de um livro, um igreja, um sacerdote, uma ideologia, uma bebida ou droga? Quais são os esteios que sustentam cada um de nós, sutilmente ou de maneira muito óbvia? O por que dependemos, e o descobrimento da causa da dependência liberta a mente dessa dependência? Entendeis essa pergunta? Estamos viajando juntos; não estais à espera de que eu lhes mostre as causas de vossa dependência, porém, investigando-as juntos, as descobriremos; será um descobrimento feito por vós e que, como tal, vos dará vitalidade. Descobrimos por nós mesmos que dependemos de alguma coisa, por exemplo, de um auditório, para nos estimular e dele, portanto, necessitamos. Quando se dirige a palavra a um grande número de pessoas, pode-se adquirir uma certa espécie de energia e fica-se, portanto, na dependência desses ouvintes, de sua concordância ou discordância, para se obter aquela energia. Quanto maior a discordância, tanto maior se torna a batalha e tanto mais vitalidade se adquire; mas, se o auditório concorda, não se obtém a mesma energia. Dependemos — porque? E perguntamos a nós mesmos se, descobrindo a causa de nossa dependência, nos libertaremos dessa dependência. Acompanhai-me, por favor, com vagar. Uma pessoa descobre que necessita de ouvintes porque é muito estimulante falar a outras pessoas; por que necessita desse estímulo? Porque, interiormente, essa pessoa é superficial, interiormente nada tem, não há nenhuma fonte de energia, sempre cheia, abundante, vital, em movimento, viva. Interiormente é paupérrima e descobriu que essa é a causa de sua dependência.

Pode o descobrimento da causa nos livrar de continuar dependentes, ou esse descobrimento é meramente intelectual, mero descobrimento de uma fórmula? Se se trata de uma investigação intelectual e se foi o intelecto que descobriu a causa da dependência da mente, por meio de racionalização, de análise, pode esse descobrimento libertar a mente da dependência? Não pode, evidentemente. O mero descobrimento intelectual da causa não liberta a mente de sua dependência daquilo que lhe dá estímulo, assim como a mera aceitação intelectual de uma ideia ou a aquiescência emocional a uma ideologia não pode libertá-la.

A mente se liberta da dependência quando vê, em seu todo, essa estrutura de estímulo e dependência e vê que o mero descobrimento intelectual da causa da dependência não liberta a mente da dependência. O ver a inteira estrutura e natureza do estímulo e da dependência e perceber como essa dependência torna a mente estúpida, embotada, inerte — só esse percebimento liberta a mente.

Vemos o quadro inteiro, ou apenas uma parte dele, um detalhe? Essa é uma pergunta muito importante que nos devemos fazer, porque nós vemos as coisas em fragmentos e pensamos em fragmentos; todo o nosso pensar é fragmentário. Temos, pois, de investigar, o que significa ver totalmente. Perguntamos se nossa mente pode ver o todo, apesar de ter sempre funcionado fragmentariamente, como nacionalista, individualista, como coletividade, como católico, alemão, russo, francês, ou como indivíduo aprisionado numa sociedade tecnológica, funcionando numa especialidade, etc. — tudo dividido em fragmentos, com o bem oposto ao mal, o ódio ao amor, a ansiedade à liberdade. Nossa mente pensa sempre num estado de dualidade, de comparação, de competição, e essa mente, que funciona em fragmentos, não pode ver o todo. Se uma pessoa é hinduísta e olha o mundo por essa estreita janela, crendo em certos dogmas, ritos, tradições, educada que foi numa certa cultura, etc., evidentemente não pode perceber o todo da humanidade.

Assim, para ver alguma coisa totalmente, seja uma árvore, seja uma relação ou atividade que temos, a mente deve estar livre de toda fragmentação, porquanto, a origem da fragmentação é justamente aquele centro de onde estamos olhando. O fundo, a cultura, na qual o indivíduo é católico, protestante, comunista, socialista, chefe de família, é o centro de onde se está olhando. Assim, enquanto estamos a olhar a vida de um certo ponto de vista, ou de uma dada experiência a que estamos apegados, que constitui nosso fundo, nosso EU, não podemos ver a totalidade. A questão, pois, não é de como nos libertarmos da fragmentação. Invariavelmente, uma pessoa perguntaria: "Como posso eu, que funciono em fragmentos, deixar de funcionar em fragmentos?" Mas, essa é uma pergunta errônea. Percebe essa pessoa que depende psicologicamente de muitas coisas e descobriu intelectualmente, verbalmente e por meio de análise, a causa dessa dependência; esse mesmo descobrimento é fragmentário, por ser um processo intelectual, verbal, analítico; e isso significa que tudo o que o pensamento descobre é inevitavelmente fragmentário. Só se pode ver a totalidade de uma coisa quando o pensamento não interfere, porque então não se vê verbalmente nem intelectualmente, porém realmente, como eu vejo o fato que este microfone — sem agrado nem desagrado; ele existe. Vemos então a realidade, isto é, que somos dependentes e não desejamos libertar-nos dessa dependência ou de sua causa. Observamos, e fazemo-lo sem termos de um centro, sem termos nenhuma estrutura de pensamento. Quando há observação dessa espécie, vê-se o quadro inteiro e não um simples fragmento dele; e quando a mente vê o quadro inteiro, há liberdade.

Acabamos de descobrir duas coisas. A primeira, que há dissipação de energia quando há fragmentação. Pelo observar, pelo "escutar" a estrutura total da dependência, descobriu-se que toda atividade da mente que trabalha e funciona em fragmentos — como hinduísta, comunista, católico, ou como analista que analisa — é essencialmente a atividade de uma mente dissipada, de uma mente que desperdiça energia. A segunda coisa foi que esse descobrimento dá-nos energia para enfrentar todos os fragmentos que forem surgindo e, consequentemente, observando-os à medida que surgem, eles vão sendo dissolvidos.

Descobriu-se a própria origem da dissipação de energia e que toda a fragmentação, divisão, conflito (pois divisão significa conflito) é desperdício de energia. Todavia, pode-se pensar que não há desperdício de energia no imitar e aceitar a autoridade, no depender do sacerdote, dos rituais, do dogma, do partido, de uma ideologia — porque então a pessoa aceita e segue. Mas o seguir e o aceitar uma ideologia, seja boa, seja má, sagrada ou não sagrada, representa uma atividade fragmentária e, por conseguinte, causa conflito. O conflito surgirá, inevitavelmente, porque haverá separação entre o que é e o que deveria ser, e esse conflito é uma dissipação de energia. Pode-se ver a verdade aí contida? Mais uma vez, não se trata de "como libertar-me do conflito?" — Se fazemos a nós mesmos a pergunta "Como posso libertar-me do conflito?", criamos outro problema e, por conseguinte, aumentamos o conflito. Mas se, ao contrário, vemos — tal como vemos o microfone — clara e diretamente, pode-se então compreender a verdade essencial de uma vida inteiramente sem conflitos.
Mas, senhores, digamo-lo de maneira diferente. Estamos sempre a comparar o que somos com o que deveríamos ser. Esse "deveria ser" é uma projeção do que pensamos deveria ser. Comparamo-nos com nosso vizinho, com a riqueza que ele tem e nós não temos. Comparamos-nos com os que são mais brilhantes, mais intelectuais, mais afetuosos, mais bondosos, mais famosos, mais isto e mais aquilo. O mais tem um importantíssimo papel em nossas vidas, e essa medição que em cada um de nós se verifica, a medição de nós mesmos com alguma coisa, é uma das principais causas do conflito. Nela há competição, comparação com isso ou aquilo, e ficamos envolvidos nesse conflito. Ora, porque existe comparação? Fazei a vós mesmo essa pergunta. Por que vos comparais a outrem? Naturalmente, um dos ardis da propaganda comercial é fazer-vos crer que não sois o que deveríeis ser, etc. Isso começa desde os mais verdes anos de nossa vida — ser tão arguto como outrem, nos exames, etc. Por que nos comparamos psicologicamente? Verificai-o. Se não comparo, que sou eu? Eu ficaria embotado, vazio, estúpido — ficaria sendo o que sou. Mas, pela comparação, espero evolver, desenvolver-me, tornar-me mais inteligente, mais belo, mais isto e mais aquilo. Isso acontecerá? O fato é que eu sou o que sou e, pela comparação, estou fragmentando esse fato, a realidade, e isso é um desperdício de energia; mas, ao contrário, o não comparar, porém ser o que realmente sou, é ter extraordinária energia de que necessito para olhar. Quando sois capaz de olhar sem comparação, estais fora de toda comparação, o que não indica uma mente estagnada, contentada; pelo contrário!

Estamos vendo, pois, em essência, como a mente desperdiça energia e como essa energia é necessária para compreendermos a totalidade da vida e não apenas os seus fragmentos. Ela é como um vasto campo todo florido. Se aqui estivestes antes, notastes como, antes de ser ceifado o feno, havia milhares de variegadas flores? Mas, em geral, escolhemos só um dado canto do campo e nesse canto ficamos a olhar uma só flor; não olhamos o campo inteiro. Damos importância a uma só flor e, com dar importância a essa única flor, rejeitamos o resto. É o que fazemos quando atribuímos importância à imagem que temos de nós mesmos; rejeitamos então todas as outras imagens e, por conseguinte, ficamos em conflito com cada uma delas.

Assim, como dissemos, é necessária a energia, energia "sem motivo", sem direção. Para tê-la, devemos ser interiormente pobres, não ser rico das coisas que a sociedade, que nós formamos. Como, em maioria, somos ricos das coisas da sociedade, não existe pobreza em nós. O que a sociedade formou em nós, o que em nós mesmos formamos, é avidez, inveja, cólera, ódio, ciúme, ansiedade — disso somos riquíssimos. Para compreender tudo isso, precisamos de uma extraordinária vitalidade, tanto física como psicológica. A pobreza é uma das coisas mais estranhas da vida; as várias religiões de todo o mundo têm pregado a pobreza — pobreza, castidade, etc. A pobreza do monge que veste um hábito, muda de nome, recolhe-se a uma cela, abre a Bíblia e fica a lê-la interminavelmente; esse homem é reputado pobre. O mesmo se faz, de diferentes maneiras, no Oriente, e isso é considerado pobreza. O voto de castidade, o possuir uma só tanga, só uma túnica, só tomar uma refeição por dia — todos nós respeitamos essa espécie de pobreza. Mas, aqueles que tomaram o manto da pobreza continuam ricos das coisas da sociedade, interiormente, psicologicamente. , uma vez que estão ainda em busca de posição, de prestígio; pertencem à categoria do "religioso", e esse tipo é uma das divisões da cultura social. Isso não é pobreza; pobreza é estar completamente livre da sociedade, embora se possuam algumas roupas e se tomem algumas refeições diárias. Torna-se a pobreza uma coisa maravilhosa e bela, quando a mente está livre da estrutura psicológica da sociedade, porque então já não há conflito, não há buscar, indagar, desejar — não há nada. Só essa pobreza interior pode ver a verdade existente numa vida inteiramente livre de conflito. Essa vida é uma benção que não se encontra em nenhuma igreja ou templo.

Krishnamurti — Saanen, 11 de julho de 1967 -




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