Sobre o funcionamento da mente
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Sobre o funcionamento da mente


PERGUNTA: Porque vossos ensinamentos são puramente psicológicos? Não contêm cosmologia, nem teologia, nem ética, nem estética, nem sociologia, nem ciência política, nem mesmo higiene. Porque vos concentrais exclusivamente na mente e seu funcionamento?

            KRISHNAMURTI: Por uma razão muito simples, meu Senhor. Se o pensante pode compreender a si mesmo, o problema inteiro está resolvido. Ele é então criação, ele é então realidade; e, então, o que faz não será anti-social. A virtude não é um fim em si mesma; a virtude traz a liberdade, e só pode haver liberdade, quando o pensante, que é a mente, deixa de existir. É por essa razão que uma pessoa precisa compreender o processo da mente, o “eu” o feixe de desejos que cria o “eu”: minha propriedade, minha esposa, minhas idéias, meu Deus. Por certo, é porque o pensante está tão confuso que as suas ações são confusas; é porque o pensante está confuso que busca a realidade, a ordem, a paz. Porque o pensante está confuso, porque é ignorante, deseja conhecimento; e porque o pensante está em contradição, em conflito, cultiva a ética, para controlá-lo, guiá-lo, ampará-lo. Assim, se posso compreender a mim mesmo, que sou o pensante, está perfeitamente resolvido o problema, não é verdade? Não serei então anti-social, não serei rico e não explorarei os pobres, não desejarei coisas e mais coisas, produzindo conflito entre os que têm e os que não têm. Não terei então casta, nem nacionalidade, não haverá separação entre um homem e outro homem. Amaremo-nos então uns aos outros, seremos bondosos. Assim, o que importa não é a cosmologia, nem a teologia, nem a higiene — embora a higiene seja necessária, e a cosmologia e a teologia inúteis; o que importa é que eu me compreenda a mim mesmo, o pensante.
            Ora, é o pensante diferente do seu pensamento? Se cessa o pensamento, onde fica o pensante? Pode a qualidade ser retirada do pensante? Se fossem retiradas as qualidades do pensante, do “eu”, continuaria ele a existir? Assim os pensamentos são o pensante, não estão separados. O pensante separou-se de seus pensamentos para proteger-se; porque pode então modificar os pensamentos, de acordo com as circunstâncias, e ao mesmo tempo permanecer destacado como “o pensante”. No momento em que o pensante começa a modificar-se, deixa de existir. Por isso, um dos estratagemas da mente é o de separar o pensante dos pensamentos, e ocupar-se então com os pensamentos, com a maneira de modificá-los, mudá-los, transformá-los — sendo tudo isso um logro, uma ilusão. Porque não há pensante, se não há pensamento, e a simples modificação dos pensamentos não elimina o pensante. Essa é urna das maneiras hábeis que o pensante tem de se proteger a si próprio, de dar permanência a si próprio; ao passo que os pensamentos são impermanentes. É assim que o “eu” se perpetua; mas o “eu” não é permanente, seja o “eu” superior, seja o “eu” inferior: tanto um como o outro estão nos domínios da memória, nos domínios do tempo.
            A razão, por que dou tanta importância e tanta urgência à psicologia da mente, é que a mente é a causa de toda ação; e se, sem a compreendermos, ficarmos apenas a reformar, a remendar, a cercear as ações superficiais, fazemos com isso obra de multo pouca valia. É o que vimos fazendo há gerações, produzindo confusão, loucura e miséria pelo mundo. Precisamos, por isso, descer à própria raiz do problema da existência, da consciência, que é o “eu”, o pensante. E sem se compreender o pensante e suas atividades, meras reformas superficiais da sociedade nenhuma significação têm — pelo menos não a têm para o homem verdadeiramente sincero e interessado. Eis porque cumpre que cada um de nós procure saber aquilo a que dá mais importância: se ao superficial, exterior, se ao fundamental. Porque, senhores, com o mundo empolgado como está da sanha de massacrar, de destruir, de jogar os homens uns contra os outros, sem dúvida chegou a hora de aqueles que são de fato sinceros, determinados, atacarem o problema radical e profundamente, em vez de cuidarem de reformas e aparos superficiais. Tal a razão por que precisais descobrir por vós mesmos aquilo a que deveis dar mais importância, sem depender, para isso, de outra pessoa. Se derdes importância, unicamente, à psicologia do pensante, porque eu o faço, sereis nesse caso imitadores e podeis ser persuadidos a imitar outro qualquer, quando o imitar-me não mais vos convier. Precisais, pois, pensar neste problema, com todo o empenho, muito profundamente, e não ficar esperando que outro venha dizer-vos a que deveis dar mais importância. Tudo isso, sem duvida, é muito evidente e muito claro. A religião organizada, o partido e a política das potências, o socialismo, o capitalismo, o comunismo, todos falharam, porque não cuidam da natureza fundamental do homem. Só lhes interessa cercear as influências ambientes; e que valor tem isso quando o homem, interiormente, está enfermo, doente e confuso? Um bom médico, por certo, não se interessa apenas pelos sintomas. Os sintomas são cinicamente sinais. Ele vai à causa, erradicando-a. Assim, o homem que tem empenho tem de ir à causa, e não jogar com palavras, superficialmente; e a causa fundamental desta miséria que reina no mundo é a falta de compreensão do processo de nós mesmos. Não queremos implantar a ordem dentro em nós, cuidando apenas da ordem externa.
            Haverá ordem externa quando houver ordem interna, porque o interior sempre prevalece sobre o exterior. As sim sendo, é evidente que se deve realçar a importância do processo psicológico, com tudo o que ele implica.
            Quando uma pessoa se compreende a si mesma, encontra a felicidade e a paz, e um homem feliz não vive em conflito com o seu próximo. Só o homem infeliz, o homem ignorante, vive em conflito; suas ações são anti-sociais, e em toda parte aonde vai causa sofrimento e mais conflito. Mas um homem que se compreende a si mesmo, vive em paz, e por conseguinte as suas ações são pacificas.
            Krishnamurti – 22 de fevereiro de 1948 – Da Insatisfação à Felicidade




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