A Ação que Transforma
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A Ação que Transforma


Quando vemos o caos e a desordem no mundo, não só exterior como interiormente, quando nos apercebemos de toda esta desgraça - a fome, a guerra, o ódio, a desumanidade - muitos de nós perguntam o que é que uma pessoa pode fazer. Como ser humano confrontado com toda esta confusão, o que é que cada um de nós pode fazer?

Quando pomos esta questão, vem-nos o sentimento de que devemos comprometer-nos com alguma espécie de ação política ou social, ou com uma busca e uma descoberta religiosas. A pessoa sente que deve comprometer-se e, por todo o mundo, esse desejo de comprometimento tornou-se muito importante. Muitos se tornam ativistas, outros afastam-se deste caos social e vão atrás de uma visão.

Penso que muito mais importante do que nos comprometer-nos é estarmos inteiramente implicados na estrutura total e na natureza da vida. Quando a pessoa se compromete, compromete-se apenas com uma parte e, portanto, é a parte que se torna importante, o que cria divisão. Mas quando se está completamente, totalmente, implicado em todo o problema do viver, a ação é inteiramente diferente. Ela é, então, não só interior, mas também exterior: está em relação com o problema da vida no seu todo. Estar implicado significa um completo relacionamento com os problemas, pensamentos e sentimentos da mente humana. E quando se está assim completamente implicado na vida, e não apenas empenhado numa das suas partes ou fragmentos, tem de se ver então o que cada um, como ser humano, pode realmente fazer.

Para a maior parte de nós, a ação deriva de uma ideologia. Primeiro temos uma idéia, um conceito, uma fórmula, acerca do que deveríamos fazer. Depois de termos formulado o que deveríamos fazer, atuamos a partir dessa ideologia. Assim, há sempre uma divisão, e daí um conflito entre a ação e o que se estabelecera que ela "deveria ser". E, dado que a maior parte da vida das pessoas é uma série de conflitos, de lutas, não podemos deixar de perguntar a nós mesmos se será possível viver neste mundo em total relacionamento com ele e não em algum mosteiro isolado.

Isto traz consigo inevitavelmente uma outra questão: Que é o relacionamento? Por que é nisso que estamos implicados - no relacionamento entre os seres humanos - a vida toda é isso.

Se não existisse relação alguma, se se vivesse em completo isolamento, a vida acabaria. A vida é um movimento em relação. Compreender essa relação e pôr termo ao conflito nela existente é todo o nosso problema: ver se o homem poderá viver em paz, não só dentro de si mesmo, mas também exteriormente. Porque então haverá retidão na conduta, e esta é para nós extremamente importante: conduta é ação.

Podereis perguntar: "Que pode um indivíduo, um ser humano, fazer em face deste problema imenso da vida, com a sua confusão, as guerras, o ódio, a angústia, o sofrimento?" Que é que ele pode fazer para provocar uma mudança, uma revolução radical, uma nova maneira de ver e de viver?

Penso que perguntar "que posso eu fazer que vá afetar esta confusão e desordem totais?" é uma pergunta errada. Se perguntarmos "que posso fazer em face desta desordem?", então já damos a resposta: "não posso fazer nada". Portanto, a questão está mal posta. Mas se estivermos interessados, não no que poderemos fazer em face desta enorme desgraça, mas em como poderemos viver uma vida totalmente diferente, então veremos que a nossa relação com o homem, com toda a comunidade, com o mundo, sofre uma transformação. Porque afinal, vós e eu, como seres humanos, somos o mundo inteiro - não estou dizendo isto retoricamente, mas como uma realidade: eu e vós somos o mundo inteiro. Aquilo que uma pessoa pensa, o que sente, a angústia, o sofrimento, a ambição, o ciúme, a extrema confusão em que está, isso é o mundo.

Tem de haver uma transformação no mundo, uma revolução radical: não se pode viver como se está vivendo - uma vida "burguesa", superficial, uma existência falsa, dia após dia, indiferente ao que está acontecendo.

Se, como seres humanos, vós e eu pudermos transformar-nos totalmente, então o que quer que façamos será correto. Então não criaremos conflito nem dentro de nós nem, por conseqüência, exteriormente. Este é pois o problema. É isto que o orador quer considerar convosco esta tarde. Porque, como dissemos, a maneira como levamos a nossa vida, o que fazemos na nossa existência diária - não em momentos de grande crise, mas na realidade de cada dia - é da maior importância. Relação é vida, e essa relação é um movimento constante, uma constante mudança.

Assim, o nosso problema é: Como é que eu, ou vós, poderemos mudar tão fundamentalmente que amanhã de manhã acordemos seres humanos diferentes, encarando e resolvendo instantaneamente qualquer problema que surja, em vez de continuarmos a carregá-lo, como um fardo, para que haja amor no nosso coração e sejamos capazes de ver a beleza dos montes e a luz que se reflete na água? É evidente que, para provocar esta transformação, temos de compreender-nos a nós mesmos, porque, sejamos nós o que formos, o autoconhecimento, não teórico, mas real, é extremamente importante.

Sabem que quando uma pessoa encara todos estes problemas, fica profundamente tocada, mas não são as palavras que nos tocam, não é a descrição, porque a palavra não é a coisa, a descrição não é o que é descrito.

Quando uma pessoa se observa tal como realmente é, ou fica desalentada porque se considera sem possibilidades, feia, desgraçada, ou então olha para si sem se julgar. Olhar para nós próprios sem qualquer juízo de valor é extremamente importante, porque é a única maneira de podermos compreender-nos e conhecer-nos a nós mesmos. E nesse observar-se a si mesmo com objetividade - o que não é um processo egocêntrico ou de auto-isolamento, nem é pôr-se à parte de qualquer outro ser humano ou do resto da humanidade - a pessoa compreende como está terrivelmente condicionada: pelas pressões econômicas, pela cultura em que vive, pelo clima, por aquilo que come, pela propaganda das organizações chamadas "religiosas", comunistas etc. Esse condicionamento não é superficial, vai até muito fundo, e, desse modo, a pessoa interroga-se se alguma vez poderá libertar-se, porque se assim não for ficará escravizada, vivendo em conflito e luta incessantes - um modo de viver que as pessoas aceitam.

Espero que estejam ouvindo com atenção, não escutando apenas as palavras, mas usando-as como um espelho para se observarem a si mesmos. A comunicação entre o orador e vós tornar-se-á então inteiramente diferente, estaremos assim tratando de fatos e não de suposições, de opiniões ou juízos de valor, e todos estaremos empenhados neste problema de saber como é que a mente poderá ser descondicionada, transformada, de maneira completa.

Como dissemos, esta compreensão de nós mesmos só é possível quando nos tornarmos atentos ao nosso relacionamento. Só no relacionamento a pessoa pode realmente observar-se; nele todas as reações, todos os condicionamentos se revelam. Assim, na relação, a pessoa apercebe-se do seu verdadeiro estado. E, ao observar-se, toma consciência desse imenso problema do medo.

Podemos aperceber-nos de que a mente está sempre em busca de certezas, de estar a salvo, de estar segura. A mente que está segura, que está a salvo, é uma mente "burguesa", sem qualidade. Todavia, todos desejamos estar completamente em segurança. Mas psicologicamente isso não existe. Vejam o que acontece: exteriormente - é muito interessante observá-lo - cada pessoa deseja estar a salvo, estar segura. Psicologicamente, porém, faz tudo para causar a sua própria destruição. Podemos constatá-lo. Enquanto houver Estados com os seus governos soberanos, os seus exércitos e armadas etc., terá de haver guerras. Estamos psicologicamente condicionados para aceitar que somos uma nação, um grupo particular, pertencendo a uma determinada ideologia ou religião.

Não sei se já observaram o mal que as organizações religiosas têm trazido ao mundo, como elas têm dividido o homem. Tu és católico, eu sou protestante. Para nós, o rótulo é muito mais importante do que o verdadeiro estado de afeição, de amor, de bondade. As nacionalidades dividem-nos. Podemos observar esta divisão que nos condiciona e produz medo.

Vamos portanto examinar a questão do que fazer em relação ao medo. Se não resolvermos esse medo, viveremos na escuridão, viveremos em violência. Uma pessoa que não tem medo não é agressiva, um ser humano que não tem nenhum sentimento de medo, de qualquer espécie, é verdadeiramente livre e pacífico.

Como seres humanos, precisamos resolver este problema, porque, se não formos capazes de o fazer, não nos será possível viver com retidão. A não ser que compreendamos o nosso comportamento, a não ser que haja uma conduta relacionada com a virtude - embora se possa não gostar dessa palavra - e a não ser que se esteja totalmente livre do medo, a mente nunca será capaz de descobrir o que é a verdade, o que é realmente a felicidade, e se de fato existe um estado intemporal.

Quando há medo, a pessoa deseja evadir-se, mas essa evasão é completamente absurda e imatura. Temos portanto de encarar este problema do medo. Poderá a mente estar inteiramente livre dele, não só a nível consciente, mas também a níveis mais profundos, a nível do chamado inconsciente? É o que vamos examinar esta tarde, porque, sem compreender e resolver o problema do medo, a mente nunca poderá ser livre. E só em liberdade se pode explorar e descobrir. É pois essencial que a mente se liberte do medo. Vamos então aprofundar isto?

Antes de mais, lembrem-se, por favor, de que a descrição não é aquilo que é descrito, e não fiquem, portanto, presos na descrição, nas palavras. A palavra, a descrição é só um meio para comunicar. Mas se se fica agarrado à palavra, não se pode ir muito longe. Temos de perceber não apenas o sentido das palavras, mas também de compreender que a palavra não é realmente a coisa.

Que é então o medo? Espero que investiguemos juntos. Peço-lhes que não se limitem a ouvir, sem dar completa atenção; impliquem-se nisto, vivam-no inteiramente. Porque é o vosso medo, não o meu. Vamos fazer uma viagem juntos neste complexíssimo problema. Se a pessoa não o compreender e não se libertar do medo, o relacionamento não é possível: continuará a ser penoso, cheio de conflito e sofrimento.

Que é o medo? Tem-se medo do passado, do presente, ou de alguma coisa que possa acontecer amanhã. O medo envolve tempo. Tem-se medo da morte, que reside no futuro; ou de algo que aconteceu, ou da dor que se sentiu quando se esteve doente. Reparemos bem nisto. Medo implica tempo: receia-se, por exemplo, uma dor que já se teve e que pode acontecer outra vez. Receia-se algo que possa ter lugar amanhã, no futuro. Ou tem-se medo do presente. Tudo isto envolve tempo.

Psicologicamente falando, se não houvesse ontem, hoje e amanhã, não haveria medo. O medo é não só do tempo, mas é também produto do pensamento. Ou seja, ao pensarmos no que aconteceu ontem - e que foi doloroso - pensamos que isso poderá acontecer outra vez amanhã. É o pensamento que produz esse medo. O pensamento gera o medo: pensar na dor, pensar na morte, pensar nos fracassos ou nas realizações, no que poderá acontecer, no que deveria ser etc. O pensamento produz medo e dá vitalidade à continuação do medo. E o pensamento, ao pensar no que ontem nos deu prazer, sustenta esse prazer, dá-lhe duração. Assim, o pensamento produz, sustenta, alimenta não só o medo, mas também o prazer. Observai bem isto, em vós mesmos, vede o que realmente se passa convosco.

Tivestes uma experiência agradável, aquilo que geralmente se chama uma experiência feliz, e pensais nela. Quereis repeti-la, quer se trate de uma experiência sexual ou de outra qualquer. Ao pensardes nisso que vos deu um momento agradável, desejais que esse prazer se repita, que ele continue. Assim, o pensamento é responsável não só pelo medo, como também pelo prazer. Pode-se ver a verdade disto, o fato real de que o pensamento sustenta o prazer e alimenta o medo. É ele que dá origem tanto ao prazer como ao medo; os dois não estão separados. Quando há procura de prazer, há necessariamente medo também; os dois tornam-se inevitáveis, porque ambos são produzidos pelo pensamento.

Reparai, por favor, que não estou persuadindo-vos de coisa alguma. Não estou fazendo propaganda. Nada disso. Porque fazer propaganda é mentir; se alguém estiver tentando convencer-vos de alguma coisa, não vos deixeis convencer. Aquilo de que estamos tratando é algo muito mais sério do que convencer ou apresentar opiniões e juízos de valor. Estamos tratando de realidade, de fatos. E os fatos - que se podem observar - não necessitam de opinião alguma. Não precisamos que nos digam o que o fato é, ele aí está, se formos capazes de o observar.

Vê-se pois que o pensamento sustenta e alimenta tanto o medo como o prazer. Queremos que o prazer continue, queremos tê-lo cada vez mais. O prazer máximo para o homem é saber se existe um estado permanente no céu, ou seja, Deus; Deus é para ele a mais alta forma de prazer. E, se se observar, toda a moralidade social - que é realmente imoral - está baseada no prazer e no medo, no prêmio e no castigo.

Quando se vê este fato real - não a descrição, não a palavra, mas a coisa descrita - a realidade de como o pensamento dá origem a tudo isto, então pergunta-se: "Será possível o pensamento terminar?" Parece uma pergunta disparatada, mas não é. Ontem vimos o pôr do Sol - os montes imensamente iluminados pelo sol da tarde - e foi uma maravilha, uma beleza que nos deu uma grande alegria. Poder-se-á apreciá-lo tão completamente que isso fique terminado, para que o pensamento o não transporte para amanhã? E poder-se-á encarar o medo, se o medo existir? Isso só é possível quando se compreende toda a estrutura e natureza do pensamento. E assim pergunta-se: "Que é pensar?"

Para a maior parte de nós, pensar tornou-se extraordinariamente importante. Nunca nos damos conta de que o pensamento é sempre velho. O pensamento nunca é novo, nem nunca pode ser livre. Falar em liberdade de pensamento é completamente sem sentido, a não ser que isso signifique podermos expressar o que queremos, dizer o que nos apetece; em si mesmo o pensamento nunca é livre, porque é a resposta da memória. Podemos observar isso por nós. O pensamento é a resposta da memória, da experiência, do conhecimento. O conhecimento, a experiência, a memória são sempre velhos e assim o pensamento é sempre velho; nunca pode portanto ver nada verdadeiramente novo.

Poderá a mente olhar para o problema do medo sem a interferência do pensamento? Compreendem?

Uma pessoa tem medo. Tem medo do que fez. Esteja pois completamente atenta a ele, sem a interferência do pensamento - e haverá medo então? Como dissemos, o medo é originado por meio do tempo; tempo é pensamento. Isto não é filosofia, nem é nenhuma experiência mística; observai-o simplesmente em vós próprios e vereis.

Percebe-se que o pensamento tem de funcionar objetivamente, com eficiência, de maneira lógica e sã. Quando se vai para o emprego, ou quando se faz seja o que for, o pensamento tem de operar, de outro modo não se pode fazer nada. Mas, no momento em que o pensamento dá origem ou sustenta o prazer e o medo, então deixa de ser eficiente. Então gera desajustamento na relação e causa portanto conflito.

Assim, pergunta-se se poderá haver um findar do pensamento numa direção e, no entanto, com o pensamento funcionando na sua mais alta capacidade. Estamos empenhados em saber se o pensamento pode estar ausente quando, por exemplo, a mente vê o por do Sol em toda a sua beleza. Só então se vê essa beleza, e não quando a mente está cheia de pensamentos, de problemas, de violência. Ou seja, se o observarmos no momento de vermos o pôr do Sol, o pensamento está ausente. Olhamos aquela luz extraordinária sobre os montes, com grande encantamento, e, nesse momento, o pensamento não tem nisso lugar nenhum.

No instante seguinte, porém, o pensamento diz: "Que maravilhoso, que belo foi, quem me dera pintá-lo, escrever um poema sobre ele, gostaria de contar aos meus amigos esta coisa bonita." Ou ainda: "Gostaria de ver um pôr do Sol assim, outra vez, amanhã." E nessa altura, o pensamento começa a criar problemas. Porque então diz: "Amanhã hei de ter esse prazer outra vez"; e, quando isso não acontece, há dor. É muito simples, e é exatamente por causa da sua simplicidade que isso passa despercebido. Todos desejamos ser terrivelmente "inteligentes" - somos muito sofisticados, muito intelectuais, lemos muito... Mas toda a história psicológica da espécie humana - não quem foram os reis, ou que guerras houve, nem todo esse absurdo das nacionalidades - está dentro de cada um. Quando somos capazes de ler isso em nós mesmos, compreendemos. Então somos uma luz para nós próprios, então não há autoridade, então somos realmente livres.

A nossa pergunta portanto é: Poderá o pensamento deixar de interferir? É esta interferência que produz tempo. Compreendem? Reparemos na morte. Há grande beleza no que está envolvido na morte, e não é possível compreender essa beleza se houver qualquer forma de medo. Estamos apenas mostrando que receamos a morte por ela poder acontecer no futuro, sendo inevitável. Assim, o pensamento pensa nisso, e fecha-lhe a porta. Ou então pensa em algum medo que se teve - o sofrimento, a ansiedade - e que isso poderá repetir-se... Estamos prisioneiros do mal que o pensamento cria.

Contudo, podemos ver também a extraordinária importância do pensamento. Quando se vai para o emprego, por exemplo, ou quando se faz alguma coisa de caráter técnico, tem de se usar o pensamento e o conhecimento.

Percebendo todo este processo, desde o início desta conversa até agora - vendo tudo isto - pergunta-se: "Será o pensamento capaz de estar silencioso? Poder-se-á, por exemplo, ver a beleza do pôr do Sol e ficar completamente envolvido na beleza desse poente sem que o pensamento introduza aí a questão do prazer?" Reparem nisto, por favor. Se assim for, a conduta é cheia de retidão. Só quando o pensamento não cultiva o que acha que é virtude é que a conduta é de fato virtuosa, de contrário torna-se deformada e sem integridade. A virtude não é do tempo ou do pensamento; o que significa que ela não é produto do prazer ou do medo.

Assim, agora o problema é: Como é possível, por exemplo, olhar o pôr do Sol sem que o pensamento teça prazer ou dor à volta disso? Será possível olhá-lo com tal atenção, com um envolvimento nessa beleza de tal modo completo que, uma vez visto o pôr do Sol, isso fique terminado, para que o pensamento não o transporte, como prazer, para "amanhã"?

Estamos comunicando? Estamos realmente? (Participantes - Sim). Bem, sinto-me satisfeito, mas não sejam tão rápidos dizendo "sim". Porque se trata de um problema muito difícil. Observar, por exemplo, o pôr do Sol sem a interferência do pensamento exige uma disciplina tremenda; mas não a disciplina do conformismo, não a da repressão ou do controle. A palavra "disciplina" significa aprender - não conformar-se ou obedecer - aprender acerca de todo o processo de pensar e do lugar que lhe pertence.

A negação do pensamento necessita de grande observação. E, para observar, tem de haver liberdade. Nesta liberdade conhece-se o movimento do pensamento e há então aprendizagem ativa.

Que entendemos nós por aprender? Quando se vai para a escola ou para a universidade aprende-se muita informação, não de grande importância talvez, mas aprende-se. Isso se torna conhecimento, e é a partir desse conhecimento que atuamos, quer no campo tecnológico, quer em todo o campo da consciência. Sendo assim, temos de compreender profundamente o que essa palavra "aprender" realmente significa.

A palavra "aprender" representa obviamente um presente ativo. Está-se sempre aprendendo. Mas, quando esse aprender se torna um meio de acumulação de conhecimentos, ele é então uma coisa totalmente diferente. Ou seja, aprendi da experiência anterior que o fogo queima. Isso é conhecimento. "Aprendi-o", portanto não me aproximo do fogo. Cessei de aprender. E a maior parte de nós, "tendo aprendido", atua a partir daí. A informação que acumulamos acerca de nós próprios - ou dos outros - torna-se conhecimento; então, esse conhecimento torna-se quase estático, e é a partir disso que atuamos. Por conseqüência, essa ação é sempre velha. Aprender é pois algo inteiramente diferente.

Se esta tarde se tem estado a ouvir com atenção, tem-se estado a aprender a natureza do medo e do prazer; tem-se estado a aprender, e é daí que se atua. Espero que compreendam a diferença. Aprender implica uma ação constante. Está-se sempre aprendendo. E o próprio ato de aprender é agir. O agir não está separado do aprender. Para a maior parte de nós, porém, a ação está separada do conhecimento. Ou seja, há a ideologia ou o ideal, e de acordo com esse ideal agimos, só aproximando a ação desse ideal. E assim, portanto, a ação é sempre velha.

Aprender, tal como ver, é uma grande arte. Que acontece quando vemos um flor? Será que a vemos realmente, ou vemo-la através da imagem que temos dessa flor? São duas coisas inteiramente diferentes. Quando olhamos para uma flor, para uma cor, sem a nomear, sem o gostar ou o não gostar, sem nenhuma cortina entre nós e aquilo que se vê como flor, sem a palavra, sem o pensamento, então a flor tem uma cor e uma beleza extraordinárias. Mas quando se olha para a flor através de um conhecimento botânico, quando se diz "isto é uma rosa", já se condicionou o olhar.

Ver, assim como aprender, é de fato uma arte; mas não é preciso ir a nenhuma escola para a aprender. Pode-se aprendê-la onde se está. Podemos olhar uma flor, e descobrir como olhamos para ela, se somos sensíveis, se estamos acordados, atentos, então vemos que o espaço entre nós e a flor desaparece, e, quando esse espaço desaparece, vemos a flor de maneira muito intensa e cheia de vitalidade. Do mesmo modo, quando nos observamos a nós próprios sem esse espaço - e portanto sem ser como "o observador" e "a coisa observada" - vemos então que não há contradição e portanto não há conflito.

Quando se vê a estrutura do medo, vê-se também a estrutura e a natureza do prazer. Ver é aprender sobre isso, e a mente portanto não fica aprisionada na procura de prazer. A vida tem então um sentido completamente diferente. Vive-se - mas não à procura de prazer.

Agora, esperem um pouco, antes de começarem a fazer perguntas. Gostaria de lhes pôr uma questão: Que é que tiraram desta palestra? Não me respondam, por favor. Reparem se ficaram com palavras, descrições, idéias, ou se captaram algo verdadeiro, inegável, indestrutível - porque o vistes vós mesmos. Então, sois uma luz para vós próprios e, portanto, não acendereis a vossa vela em qualquer outra luz; vós mesmos sois essa luz. Se isso for um fato, e não uma pretensão hipócrita, então terá valido a pena uma reunião desta espécie. Querem agora fazer perguntas?

Como ontem dissemos, fazem-se perguntas para investigar, não para mostrar que se é mais inteligente do que o outro. Uma pessoa que compara não é inteligente - um homem inteligente nunca faz dessas comparações. Faz-se uma pergunta ou porque, pelo perguntar, a pessoa deseja descobrir-se, revelar-se a si mesma, e desse modo aprender, ou então, às vezes, para "atrapalhar" o conferente - o que não levamos a mal. Também se põem questões para ter uma visão mais ampla, para abrir a porta. Assim, a espécie e a qualidade da pergunta que ides fazer dependerá de vós. Mas, por favor, isso não significa que o orador não quer que se façam perguntas.

Interlocutor - Que é que se há de fazer quando se repara no pôr do Sol e ao mesmo tempo o pensamento interfere?

Krishnamurti - Que é que se há de fazer? Vamos compreender o significado da pergunta. Olha-se o pôr do Sol, o pensamento interfere e então se diz "que é que se há de fazer?" Quem é que faz a pergunta? Não será o pensamento que diz "que hei de fazer?" Compreende a questão? Vou pô-la de outra maneira. Há um pôr do Sol com toda a sua beleza, a sua cor extraordinária, há o sentir, o gostar disso; então, vem o pensamento e digo para mim: "Cá está ele, que hei de fazer?" Escute isto com muita atenção, aprofunde-o bem. Não será também o pensamento que diz "que hei de fazer?" O "eu" que pergunta "que hei de fazer?" é resultado do pensamento. Portanto, vendo o que está interferindo com aquela beleza, o pensamento diz: "Que hei de fazer?"

Não faça nada! Se fizer alguma coisa, criará um conflito. Mas, quando olhar o pôr do Sol e o pensamento interferir, repare nisso. Dê atenção ao pôr do Sol e ao pensamento que se intromete. Não expulse o pensamento. Aperceba-se de tudo isso, sem qualquer escolha: dê atenção ao pôr do Sol e ao pensamento intrometendo-se. Se assim estiver atento, sem qualquer desejo de reprimir o pensamento, de lutar contra a interferência, se não fizer nenhuma destas coisas, descobrirá então que o pensamento fica silencioso. Porque é o próprio pensamento que está dizendo: "Que hei de fazer?" Essa é uma das artimanhas do pensamento. Não caia na armadilha; observe toda a estrutura do que está acontecendo.

I - Estamos condicionados em relação ao modo como olhamos para o pôr do Sol, estamos condicionados relativamente ao modo como escutamos o conferente. Assim, é através do nosso condicionamento que olhamos para tudo, que ouvimos todas as coisas. Como é que uma pessoa se pode libertar desse condicionamento?

K - Quando é que se tem consciência desse condicionamento, de qualquer condicionamento? Repare um pouco nisto, por favor. Quando é que temos consciência de que estamos condicionados? Teremos consciência de que estamos condicionados como Americanos, como Hindus, com católicos, protestantes, comunistas, isto e aquilo? Apercebemo-nos realmente de que temos esse condicionamento, ou apercebemo-nos dele porque alguém nos disse? Se uma pessoa o percebe porque alguém lhe mostrou que está condicionada, então isso é uma espécie de percebimento, mas se, sem que lho digam, toma consciência de que está condicionada, então isso tem uma qualidade diferente. Se lhe disserem que tem fome, é uma coisa; mas se tiver realmente fome, é outra. Ora, a pessoa, terá de descobrir qual delas é: se foi por lhe dizerem que está condicionada que o percebe; ou se, por estar atenta, por estar implicada em todo este processo de viver, por ter essa atenção, compreende por si, sem que alguém lho diga, que está condicionada. Então isso ganha vitalidade, então se torna um problema que tem de compreender muito profundamente. Vê que está condicionada, mas não porque lho disseram. E é obvio que a sua reação será deitar fora esse condicionamento, se for inteligente. Ao aperceber-se de um determinado condicionamento, a pessoa revolta-se contra ele, como a geração presente se está revoltando - o que é meramente uma reação. A revolta contra um condicionamento forma outra espécie de condicionamento.

Toma-se consciência de que se está condicionado como Protestante, Comunista, adepto do Partido Democrático ou Republicano etc. Que acontece quando não há reação, mas apenas o percebimento do que esse condicionamento realmente é? Que acontece quando se está consciente, sem escolha, desse condicionamento que a pessoa descobre por si mesma? Não há reação e assim está-se aprendendo sobre esse condicionamento, por que é que ele surge. Dois mil anos de propaganda fazem que as pessoas acreditem numa determinada forma de dogma religioso. Sabeis como a Igreja, através dos séculos, por meio da tradição, da repetição, por meio de várias festividades e rituais, tem condicionado as nossas mentes. Há repetição, dia, após dia, mês após mês, desde a infância; somos batizados e tudo o mais. E outras formas da mesma coisa têm lugar noutros países - como na Índia, na China etc.

Quando se toma consciência disso, que acontece então? Vemos com que rapidez a mente é influenciada. Quando jovem, flexível, inocente, é condicionada como Comunista, Católica, Protestante etc. Por que é que a mente é condicionada? Por que é que fica tão moldada pela propaganda? Compreendem? Porque é que se é persuadido pela propaganda a comprar certas coisas, a acreditar em certas coisas, porquê? Existe não só essa constante pressão do exterior, mas também o desejo de pertencer a um grupo, porque isso dá segurança. Deseja-se ser uma entidade tribal. E, por detrás disso, há medo, medo de estar só, de ser posto à parte não só psicologicamente, mas também de modo a poder não conseguir emprego; tudo isso está implicado. E então pergunta-se se a mente poderá ficar liberta do condicionamento.

Quando se vê o perigo do condicionamento, como se vê o perigo de um precipício ou de um animal feroz, então ele desaparece sem esforço nenhum. Mas não vemos o perigo de se estar condicionado. Não vemos o perigo do nacionalismo, como ele separa os homens. Se víssemos o seu perigo, intensamente, com grande vitalidade, abandoná-lo-íamos instantaneamente.

O problema portanto é: Será possível tomar consciência do condicionamento de maneira tão intensa que se veja a sua realidade? Não se se gosta ou não se gosta dele, mas o fato de que se está condicionado e que, portanto, a mente está incapaz de liberdade. Porque só a mente livre sabe o que é o amor.

I - É verdade que o passado devia ser consumido pelo fogo de um envolvimento total no presente?

K - E que é o presente? Sabemos o que ele é? Diz-se "vive-se no presente", como muitos intelectuais defendem - porque para eles o futuro é árido, sem sentido, e, portanto, dizem "viva no presente, tire dele o máximo partido, esteja completamente com ele". Mas temos de saber o que é o presente. Saberemos o que é o agora, o que é o presente? O presente existirá? Não, por favor, não especulem sobre isso, observem-no.

Já alguma vez repararam no que é o agora? Seremos capazes de estar atentos ao agora, de saber o que ele é? Ou só conhecemos o passado, o passado que opera no presente, e que cria o futuro? Compreendem? Quando se diz "vive no presente" tem de investigar o que é realmente esse presente. Ele existirá?

Para se perceber se existe um verdadeiro presente, tem de se compreender o passado. E quando se observa o que se é como ser humano, vê-se que se é completamente resultado do passado. Nada há de novo em nós; somos em segunda mão. Somos o passado olhando para o presente, traduzindo o presente. E esse presente é desafio, sofrimento, ansiedade, uma dúzia de coisas resultantes do passado, e, ao olharmos para tudo isso, ficamos muito assustados e pensamos no amanhã, no que nos dá prazer de novo - somos tudo isso.

Compreender o agora é um imenso problema de meditação - isso é meditação. Compreender plenamente o passado, ver onde reside a sua importância e ver também a sua não importância total, perceber a natureza do tempo - tudo isso faz parte da meditação. Talvez nos seja possível aprofundar isso numa outra tarde. Mas, antes de se ser capaz de meditar, tem de haver uma base de retidão, o que significa não ter medo. Se existir alguma espécie de medo, secreto ou evidente, a "meditação" é então perigosíssima, porque oferece uma fuga "maravilhosa". Saber o que é a mente meditativa é assim da maior importância.


Jiddu Krishnamurti - Conferência na Universidade da Califórnia, em Berkeley
in You Are The World, Harper and Row Publ., 1972
Núcleo cultural Krishnamurti, Boletim nº 30




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