É possível dissolver o centro do reconhecimento?
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É possível dissolver o centro do reconhecimento?


            Percebeis o que entendo por “reconhecimento”? Por reconhecimento, entendo algo que sucede ao encontrarmos ou vermos alguém. Temos então uma reação subjetiva, uma emoção, e reconhecemos; damos-lhe um nome; e esse reconhecimento só serve para fortalecer cada experiência; e cada experiência limita, condiciona e estreita o “eu”. Nessas condições, se desejais compreender o que é a realidade, o que é Deus, aquele centro de reconhecimento tem de desaparecer por completo. Se isso não acontecer, que tendes vós? A projeção da vossa mente e da vossa memória, do que aprendestes no passado, que vos faz reconhecer o que está sucedendo. E o que está sucedendo é vossa própria experiência, projetada. Se desejo saber o que é a verdade, deve a minha mente achar-se num estado em que não haja possibilidade de reconhecimento. É possível esse estado? Por favor, não aceiteis nenhuma dessas coisas, sem estar deveras convencidos. Conservai um ceticismo sadio e bem equilibrado, a respeito de tudo isso. Não sois meus discípulos ou seguidores. Sois entes humanos, revestidos de dignidade, que desejam descobrir a solução correta para toda essa terrível desdita. Para encontrardes a solução correta, cumpre-vos ser extremamente penetrantes, capazes de duvidar, de inquirir, bem equilibrados pelo ceticismo. É possível isso? Tendes alguma experiência que não seja um reconhecimento? Compreendeis o que isso significa? Porque, afinal de contas, isso é Deus, é a verdade, o eterno, ou como quiserdes chamá-lo. No momento em que temos uma medida para medir, já não temos a verdade. Nossos deuses são mensuráveis; conhecemo-los de antemão. Nossas escrituras, nossos amigos e instrutores religiosos nos condicionaram de tal maneira que logo sabemos o que é cada coisa que se nos apresenta. Todas as nossas atividades estão ligadas a esse processo de reconhecimento.
            É possível dissolver o centro do reconhecimento? Afinal de contas, é o desejo que fortalece o reconhecimento. Dizer “Eu sei, tive experiência, é assim” — indica fortalecimento do “eu”. Não há eu superior, nem eu inferior; eu é eu. Pois bem, para averiguarmos se há Deus, se há a verdade, se existe um estado no qual não é possível o reconhecimento, no qual cessou toda a medida, de certo, precisamos começar por com o desejo.  É tão absurdo as pessoas chamadas religiosas dizerem “Há Deus”, como outras dizerem “Não á Deus”. Isso não resolve o problema, como não o resolve o repetir a Bíblia, ou o Bhagavad Gita ou sabe Deus o que mais. Positivamente, isso não resolve o problema. E é isso o que se fazendo há séculos. E o problema não está resolvido. Estamos aumentando nossos problemas, mais e mais, e atraindo sofrimentos cada vez maiores sobre nós. Assim, para compreender este problema da existência, com toda a sua confusão, suas extremas provações, perturbações, tribulações e sofrimentos, temos, por certo, de compreender o desejo, acompanhar ó seu movimento. Só é possível isso quando a mente está cônscia de si mesma, quando não estais olhando um desejo como algo exterior a vós, quando o estais acompanhando atentamente. Vêde, senhores. Tenho um desejo. Que faço? Minha reação instintiva é condená-lo, julgá-lo idiota, tolo ou julgá-lo bom, nobre. Então, que acontece? Não acompanhei o desejo; não o penetrei; não o compreendi: detive-o apenas. Pensai bem nisso e vêde a enorme importância que tem. Garanto-vos que tereis então uma revolução da maior significação. Porque a revolução interior é a única revolução, e não a revolução econômica; porque a revolução interior sempre há de superar a revolução exterior, mas a revolução exterior nunca superará a interior. O que mais importa é a revolução psicológica interior, a regeneração; e esta só pode ocorrer se seguirmos, se compreendermos todo o processo, todo o complexo processo do desejo, dos motivos, dos impulsos psicológicos, tanto os conscientes como os inconscientes. Isso não é fácil. Nada serve dizermos: “Compreendi agora; tudo está bem; estou transformado” – porque dizer tal coisa significa apenas voltar ao torvelinho da ação. Se pudermos compreender a maneira de seguir o desejo, de conhecê-lo bem, de traduzir, resolveremos então todo estes problemas.
            Como é possível a uma pessoa comum, como vós e eu, com tantos problemas econômicos, domésticos, religiosos — como é possível, na confusão em que todos vivemos, seguir o desejo até o fim, acompanhá-lo, compreendê-lo? Como posso eu, que não sou inteligente, que tenho tantas fórmulas, tantos preconceitos e lembranças, como posso acompanhar o desejo? Seria mais fácil se tivésseis um companheiro, que vos detivesse a cada instante, dizendo: “Parai, que estais fazendo? Estais interpretando, traduzindo, condenando o desejo. Não o estais seguindo realmente. Estais em verdade disfarçando-o.” Se alguém pudesse a cada instante obrigar-vos a observar o que estais fazendo, isso talvez fosse útil. Mas não tendes um tal companheiro; desejais, tão pouco, um companheiro dessa espécie, porque criaria muitas dificuldades, seria muito irritante, perturbador. Mas tereis esse companheiro na vossa mente, se sentirdes empenho e disserdes “Quero compreender isso”. Não crieis uma dificuldade intelectual dizendo: “Quando eu digo quero, isso não representa desejo?” — Isso é fazer uso capcioso das palavras, é argumentação sutil, e sem valor. Desse modo, nunca compreenderemos nada, nem vós nem eu, por que precisamos servir-nos das palavras como instrumentos de comunicação; mas, se parais num determinado ponto, recusando-vos a ir mais longe e a perceber todos os matizes das palavras, então cessa toda a ação. Tomai, por exemplo, um desejo qualquer... o desejo de ser poderoso, que a maioria de nós tem; o desejo de dominar, que a maioria de nós tem — funcionário ou presidente, ou qualquer outro, seja rico, seja pobre, todos desejam ser poderosos. Não condeneis esse desejo, não digais “é certo, é errado”, mas, sim, examinai-o; vereis aonde ele vos conduzirá. Não precisais ler livro algum. Todas as acumulações subconscientes do desejo de poder, sob vários aspectos, se patentearão ao consciente. Está aberto à vossa frente o livro da sabedoria; e se o não souberdes ler, nunca compreendereis coisa alguma. Andais atrás de coisas sem valor e sem significação. Porque no vosso coração, na vossa mente, reside a verdade, e procurá-la no exterior é inútil, ainda que seja muito agradável. Levamos vidas muito complexas e contraditórias, não só individualmente, mas também coletivamente — brâmanes contra não-brâmanes, etc. Não são apenas problemas regionais, são vastos problemas mundiais; e não podeis resolvê-los, se vos restringis a uma limitada área. Precisamos pensar neles como um todo formidável, — e não como uma pessoa insignificante examinando um problema insignificante.
            Pois bem; é sobre esse problema que vamos discutir e falar, nas próximas seis semanas, isto, é, como compreender o desejo e como, se possível, transcender o reconhecimento, o centro que reconhece e impossibilita toda ação, criadora. Não venhais, por favor, se não sentirdes real interesse. É preferível ter só dois ou três ouvinte verdadeiramente interessados. É pura perda de tempo da vossa parte, pois já vos falo há tantos anos, e com que resultado? Por favor, não vos mostreis pesarosos por mim. Sinto que naquele centro existe algo que pode ser apreendido e compreendido, algo muito maior do que a existência física ou superficial. Eu gostaria de falar a este respeito com as duas ou três pessoas que sentem real interesse e estão em condições de o investigar. É muito difícil encontrar esses dois ou três, porquanto temos gente de toda espécie, cheia de sua própria importância, suas ambições e sua recusa a enxergar além de si próprias. Por isso, peço-vos encarecidamente que não venhais, se não sentis interesse, se não sentis um empenho ardente; porque, se tendes empenho, podemos ir muito longe e compreender, — não no decorrer do tempo, mas já. E aí é que se dá a verdadeira transformação, isto é ver uma coisa com clareza e agir prontamente. Isso, porém, requer enorme soma de paciência e observação, e integridade interior.

Krishnamurti – 5 de janeiro de 1952
Do livro: Quando o Pensamento Cessa - ICK




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