Krishnamurti — A Clareza da Compreensão
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Krishnamurti — A Clareza da Compreensão


Podíamos ficar a falar por tempo infindável, acrescentando palavras e mais palavras e chegar a várias conclusões mas, se em meio a toda essa confusão verbal prevalecer uma ação clara essa ação valerá por dez mil palavras. A maior parte de nós tem medo de agir por nos acharmos confusos, infelizes e vivermos de modo desordenado e em contradição. Mas apesar de toda esta confusão e desta desordem sempre temos a esperança de que surja algum tipo de clareza de entendimento, uma clareza que não proceda de fora e que possa não ser obscurecida; uma clareza que não nos seja dada nem seja induzida e que não possa ser-nos tirada, mas possa ser preservada, por si só, sem qualquer esforço por parte da nossa vontade. Uma clareza de espírito destituída de todo o motivo, uma clareza que não tenha fim e, portanto, que seja destituída de começo.

A maioria de nós deseja alcançar uma clareza de entendimento assim — se alguma vez chegamos a estar de todo atentos à confusão interior. Vamos ver se podemos chegar a essa clareza de modo que a mente e o coração possam encontrar firmeza e serenidade, e sejamos capazes de aniquilar os problemas e os temores. Seria bastante proveitoso percebermos se podemos ser uma luz em nós próprios, uma luz que não seja dependente de ninguém, mas que seja inteiramente livre. Podíamos explorar essa questão de modo intelectual e analítico, retirando camada após camada a essa confusão e desordem, ao longo de dias, vários anos ou talvez durante a vida inteira, e ainda assim possivelmente não a encontrarmos. Podemos seguir o processo de análise das causas e efeitos mas talvez possamos deixar isso inteiramente de lado e chegar a essa clareza diretamente, sem o fazermos por intermédio da autoridade do intelecto.

Mas para isso requer-se a meditação. A palavra meditação foi bastante deturpada e adulterada; exatamente como aconteceu com a palavra amor, que atualmente se acha maculada. Todavia mantém-se bastante adequada e prenhe de significado. Existe muita beleza, não na própria palavra mas no significado que lhe subjaze. Vamos ver se conseguimos alcançar, por nós mesmos, um estado da mente que se ache constantemente em meditação. Para estabelecermos os alicerces dessa meditação temos que entender em que consiste a vida; a vida do mesmo modo que a morte. A meditação consiste em compreender a vida e o extraordinário sentido da morte. Não se trata da procura de alguma experiência mística profunda nem da constante repetição de palavras, por mais antigas e santificadas que sejam porque isso não só deixará a mente aquietada como também entorpecida, estupidificada e hipnotizada. Bem que podemos tomar um tranquilizante do mesmo modo, que será até muito mais fácil, porque a meditação não é repetição de palavras, nem auto-hipnose nem observância de sistemas nem métodos.

A experiência implica um processo de reconhecimento, ontem passei por determinada experiência que me conferiu prazer ou sofrimento; para vivermos inteiramente essa experiência devemos reconhecê-la. Mas o reconhecimento procede de algo que já ocorreu antes, e desse modo a experiência nunca será nova. A verdade jamais poderá ser experimentada; nisso está toda a sua beleza, pois ela é sempre nova e não está naquilo que aconteceu ontem. Aquilo que ocorreu ontem, esse incidente ou o que tenha sido, tem que ser completamente esquecido; deve ter sido vivido e terminado ontem. Porque carregar essa experiência na lembrança para ser avaliada em termos de conquista ou a fim de podermos descrever a sua extraordinária grandiosidade ou convencer os outros parece ser uma completa tolice.

Temos que ser bastante prudentes e cautelosos com relação á palavra experiência porque só podemos referir-nos a ela quando já tenhamos vivenciado uma dada coisa. Isso significa que tem que existir um centro — na qualidade de pensador ou observador — que retém e guarda a coisa vivenciada. Mas provavelmente não podemos experimentar a verdade. Enquanto existir um centro que recolhe; um eu; um pensador, a verdade não poderá residir aí. Do mesmo modo quando alguém diz ter experimentado o real, não acreditem; não aceitem a sua autoridade.

Nós sempre queremos aceitar alguém que nos promete alguma coisa em troca, por não possuirmos essa luz em nós mesmos. Mas ninguém lhes poderá dar essa luz, nenhum guru, mestre, salvador; ninguém! No passado aceitamos imensa autoridade e depusemos a nossa fé nos outros mas, ou eles nos exploraram ou fracassaram por completo. Por isso devemos desconfiar e negar toda a autoridade espiritual. Ninguém poderá dar-vos essa luz que não se apaga.

Seguir outra pessoa é imitar. Seguir implica não só a negação da própria luz, a nossa própria busca, a nossa integridade e honestidade; no seguir também está implicado que o motivo constitua uma recompensa. Mas a verdade não é uma recompensa! Se quisermos compreender a verdade temos que pôr de lado toda a ideia de recompensa e castigo. A autoridade implica medo, mas disciplinar-se pelo medo de não conseguir alcançar aquilo que esse "explorador" apontou em nome da verdade ou da experiência, é negar a própria clareza de espírito, a própria honestidade. Se dissermos que temos de meditar, que temos de seguir um determinado caminho, um determinado sistema, é evidente que nos estaremos a condicionar a esse sistema ou método. Talvez consigamos obter aquilo que é prometido pelo método, contudo, isso não passará de um amontoado de cinzas porque a motivação assente na realização e no sucesso, tem o medo por base.

Entre nós não existe autoridade nenhuma. O orador não possui qualquer autoridade. Ele não está a tentar convencê-los de nada nem a pedir-lhes que o sigam. Quando seguem a orientação de alguém destroem essa pessoa. O discípulo destrói o mestre e por sua vez o mestre destrói o discípulo. Podem perceber isso através da história ou na vossa própria vida diária; quando a esposa ou o marido dominam o companheiro, ambos destroem-se mutuamente. Nessas condições não pode existir liberdade, beleza nem amor.

Se não estabelecermos as bases adequadas, com assento na ordem, numa clareza de ideias e intensidade de sentido então o pensamento deve tornar-se inevitavelmente recôndito, enganoso, ilusório, e por isso mesmo destituído de valor. O estabelecimento desses alicerces, dessa ordem, constitui o começo da meditação. A nossa vida, essa vida que levamos desde o momento em que nascemos até que morremos, o casamento, os filhos, o trabalho e as realizações, tudo isso é um campo de batalha não só interior como também tem lugar fora de nós, na família, no escritório, no grupo e na comunidade. Essa vida é uma luta constante. É a isso que nós chamamos viver: dor, receios, ansiedade e uma enorme tristeza que nos acompanha qual uma sombra. A nossa vida é isso.

Talvez uma pequena minoria seja capaz de observar essa desordem sem recorrer a desculpas aleatórias para justificar a própria confusão, apesar dessas causas externas existirem. Talvez uma pequena minoria possa observar e obter conhecimento dessa sua existência; olhá-la não só ao nível consciente como também a um nível mais profundo, sem aceitar nem negar tal confusão; essa terrível bagunça que existe em nós e no mundo ao nosso redor. Há de ser sempre uma pequena minoria a produzir toda a mudança vital.

Muito foi já escrito sobre a mente inconsciente, especialmente no Ocidente. Isso chegou mesmo a assumir um significado extraordinário. Todavia ela é tão trivial quanto a mente consciente. Se não, observem por vós mesmos. Se o fizerem perceberão que aquilo que é chamado de inconsciente constitui um resíduo da raça, da cultura, da família e dos vossos próprios motivos e apetites. Está tudo aí, oculto. Além disso a mente consciente acha-se ocupada com a rotina da vida diária, com a ida para o escritório, com o sexo, etc. Dar importância tanto a uma como a outra parece ser um ato completamente inconsequente. Ambas possuem muito pouco sentido, á excepção de que a mente consciente deve possuir um acervo de conhecimentos técnicos para poder garantir o próprio sustento.

Essa luta constante, travada tanto no nosso íntimo — a um nível profundo — quanto no superficial, reflecte todo o modo como vivemos. Trata-se de um viver de desordem, confusão, contradição e infelicidade; mas a meditação da mente que se acha presa nessa condição, é uma coisa absurda e infantil. Meditar é fazer brotar ordem em meio a essa confusão, mas não através do esforço porque todo o esforço distorce a mente.

Para ser capaz de perceber a verdade a mente tem que possuir clareza sem nenhuma distorção nem compulsão e sem direcionamento nenhum.

Assim, temos que estabelecer corretamente os alicerces, antes de mais. Ou seja, tem de haver virtude. Ordem é virtude. Mas esta virtude não tem nada que ver com a moralidade social como nós a entendemos. A sociedade impôs-nos uma certa moralidade mas essa sociedade é um produto de todo o ser humano. E assim, com essa moral, a sociedade diz-nos que podemos ser gananciosos, diz-nos que podemos matar em nome de Deus, em nome da pátria ou em nome de um ideal; diz-nos que podemos ser competitivos e invejosos, tudo ao abrigo da lei. Mas tal moralidade não possui nada de moral. Devemos negar completamente essa moralidade em nós para podermos alcançar virtude. Nisso reside a beleza da virtude. Porque a virtude não é um hábito nem uma coisa que pratiquemos dia após dia. Isso é uma rotina mecânica destituída de significado. Ser detentor de virtude implica conhecimento da própria desordem, essa desordem que passa pela contradição interior, pela tirania dos vários desejos de prazer, ambição, ganância, inveja e medo. Essas são as causas da desordem, tanto dentro como fora de nós. Tomar consciência disso significa tomar contato com a desordem. Mas só podemos tomar contato com a desordem quando não a negarmos, quando não lhe procurarmos desculpas nem culpabilizarmos os outros por ela.

A ordem não é algo que estabeleçamos mas que passa a existir por meio da negação da desordem. A virtude, que em si mesma é ordem, resulta do conhecimento da completa natureza e estrutura da desordem. Isso é bastante simples se observarmos o quanto nós somos completamente desordenados e contraditórios, e como odiamos quando pensamos amar.

Tal é o princípio da desordem e da dualidade; mas a virtude não é o resultado da dualidade (de fatores psicológicos). A virtude é uma coisa viva, uma coisa para ser colhida diariamente; não a repetição de uma determinada coisa a que no passado se chamou virtude. Isso é um ato mecânico destituído de valor. Portanto, tem de existir ordem. Isso faz parte da meditação.

Ordem significa beleza, mas a nossa vida possui muito pouca beleza. A beleza não é feita pelo homem, nem está no quadro exposto, seja moderno ou antigo; não está no edifício, nem na escultura, na nuvem que passa, na folha de árvore, na água. A beleza está onde existir ordem, na mente que se acha livre da confusão, e que se encontra em absoluta ordem. Mas só poderá haver ordem quando existir a atitude de completa negação de si mesmo e o "eu" não mais possuir importância nenhuma. O fim do "eu" faz parte da meditação; isso é a única meditação.

Temos vivido na esfera do pensamento. Temos dado uma importância tremenda ao pensar mas o pensar é uma coisa antiquada; o pensar nunca será novo pois é uma extensão da memória. E se vivermos desse modo, é óbvio que terá de haver algum tipo de continuidade. Mas será uma continuidade morta, uma coisa gasta, uma coisa antiquada; só aquilo que termina pode dar lugar a algo novo. Assim, importa bastante compreender o morrer. Morrer para tudo aquilo que é conhecido.

Já alguma vez o tentaram? Livrar-se do conhecido, das nossas recordações, ainda que só por alguns dias; livrar-se da sensação de prazer sem qualquer tipo de argumentação ou medo. Morrer para a nossa família, para a nossa casa, para o nosso nome, tornar-se completamente anônimo. Somente a pessoa que for completamente anônima e que se achar num estado de não-violência poderá ser livre da violência. Por isso morram para cada dia, não como uma ideia mas de verdade. Experimentem isso durante algum tempo.

Colecionamos tanta coisa, não apenas livros casas e contas bancárias, como também interiormente: as recordações de ofensas, de lisonja, as recordações das nossas experiências particulares assim como realizações neuróticas que nos proporcionam posição social. Experimentem morrer para tudo isso sem argumento, sem discussão, sem medo nenhum, desistindo apenas de tudo isso. Experimentem-no alguma vez e verão. Fazê-lo psicologicamente — sem desistir da vossa esposa ou marido, nem dos vossos filhos nem do vosso lar — porém interiormente — significa não estar apegado a coisa nenhuma. Nisso reside uma grande beleza. E afinal isso é amor, não será? O amor não é apego. Quando existe o sentimento de apego existe medo. E o medo torna-se inevitavelmente autoritário, possessivo, opressivo e dominante.

A meditação está na compreensão da vida; na instauração da ordem. Ordem é virtude, o que, por sua vez, é luz. Mas essa luz não pode ser acesa por ninguém, por mais experiente, mais inteligente, erudito ou espiritual que esse alguém seja. Ninguém na terra nem no céu poderá acendê-la excepto vós mesmos, pela compreensão de vós próprios, por meio da meditação.

Morrer para tudo que está dentro de nós! Porque o amor é revigorado e inocente, jovial e cheio de clareza. Se estabelecermos em nós mesmos essa ordem, essa virtude, essa beleza, poderemos passar além. Isso significa que a mente estabelece uma ordem que não pertence ao pensamento e se torna absolutamente tranquila e silenciosa, de modo natural e sem força nem disciplina nenhuma. E se vivermos diariamente nesse silêncio poderemos desempenhar todo o tipo de ação, à luz desse amor.

Se tiverem tido a sorte de chegar até este ponto então verão que nesse silêncio existe um movimento diferente que não pertence ao tempo nem á palavra, e tampouco é passível de ser avaliado pelo pensamento, por ser sempre novo. É desse algo imensurável que o homem desde sempre tem andado à procura. Mas nós temos de nos chegar a ele, porque ele não nos pode ser dado. Ele não está na palavra nem no símbolo; isso são coisas destrutivas. Mas para que isso surja devemos possuir completa ordem, beleza e amor. Portanto temos que morrer para tudo o que psicologicamente conhecemos de modo que a mente obtenha clareza, e possa ter objectividade, podendo desse modo ver as coisas tal como elas são, tanto exterior como interiormente.

Krishnamurti - O significado autêntico da meditação — 19 Maio 1968






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